Incêndios

Inúmeros mitos sobre a origem do fogo, dos povos indígenas brasileiros aos gregos, fazem alusão à sua potência transformadora e ameaça latente. Enquanto na Grécia é Prometeu quem rouba o fogo do Olimpo e o oferece aos homens, na mitologia dos Suruí Paiterei, é o pássaro preto, Orobab, que engana a onça Mekô, dona do fogo, e leva suas chamas para a humanidade — em ambos os casos trazendo sabedoria, mas também infortúnios. Ainda que seja fundamental entender tais alegorias na perspectiva dos valores da sociedade na qual surgem, através da semelhança entre elas podemos seguir vestígios que nos levam a compreender a brasa como um marco, símbolo da distinção entre natureza e cultura.

Se há uma noção de revolução sociocultural a partir do domínio do fogo, é também dele que surgem os primeiros desenhos, o embrião da nossa capacidade inventiva de pensar a natureza externa, imaginá-la e representá-la com bastões de madeira queimada, carvão, nas paredes das cavernas.

Contemplar o conjunto da obra de Kilian Glasner é espreitar a história do desenho e entender sua ligação estreita com o fogo em sua potência subversiva, mas também criadora. Esta relação surge no trabalho pela primeira vez em 2010, em “O brilhante futuro da cana-de-açúcar”, na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa ). Na instalação o artista preenche de desenhos os muros do estacionamento da instituição com uma enorme plantação de cana de açúcar. Ao saber que Calouste Gulbenkian era também conhecido como “Senhor do petróleo”, Glasner — convencido das vantagens do uso de energias renováveis, faz com que os visitantes testemunhem os faróis de seus carros, refletidos no desenho, a incendiar o canavial.

Quatro anos mais tarde a pesquisa se acentua quando Kilian, instigado pelas distintas formas da chama, desenvolve a série “Anatomia do Fogo”, se apropria dessa entidade gasosa emissora de radiação e, com execução impecável em carvão sobre papel, exalta o fogo na fatalidade. Um barco petroleiro em alto-mar, as janelas de uma casa, uma bandeira e um hotel, do qual ironicamente só restaram as letras “HOT” do letreiro, flamejam, e o encanto sublime do fogo toma conta da cena. Engana-se quem aqui enxerga unicamente o drama, o trabalho insinua uma espécie de remissão do material: o carvão que surge da queima, recria no papel o aquilo que se perdeu no incêndio.

Curioso notar que idéia dos vestígios e a referência à origem do desenho, já surgira anteriormente no trabalho do artista. Em 2009, ao ser selecionado para o “Rumos Artes Visuais” (Itaú Cultural,SP), Glasner pediu como condição para a finalização de seu trabalho, que lhe fosse cedido um imóvel fora do espaço expositivo institucional. O lugar escolhido foi uma mansão em ruínas na Rua Thomás Carvalhal, onde ele realiza a instalação “Rua do Futuro”. Na obra, raízes e caules pretos desenhados nas paredes da casa, se unem às copas das árvores reais que afloram pelos buracos no teto, janelas e paredes destruídas. Esvaziada de móveis, objetos e retratos, a casa transfigura-se em tela, e os muros/pedras, marcados com carvão, contam aquilo que se imagina do lado de fora, ou o que se deteriora por dentro. Se a residência vazia torna-se quadro em branco, os destroços queimados surgem como ferramenta. Mas, para qual futuro indica esta rua que abriga apenas os destroços de uma casa?

Dois mil e vinte um — ao adentrar a exposição no CCBB, nos deparamos com um vídeo no qual o artista caminha sobre os escombros do que restou de seu ateliê em Itamaracá – PE, vítima de um incêndio que não só consumiu sua casa, mas também toda obra que faria parte desta mostra. Em uma atmosfera silenciosa, que nos faz lembrar os filmes de Tarkovsky, Kilian se inclina sobre a ruína premeditada em trabalhos antigos. Estilhaço, objetos deslocados de
seu tempo e fragmentos de memória apontam aquilo que não foi, mas poderia ter sido. Tudo é vestígio e de tudo ficou pouco “não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil…”1 Resta o rosto de sua mãe em bronze, um soldadinho de chumbo de sua infância, pedras e carvão que, se antes fazia-se instrumento para inventar e imaginar o fogo, agora é sobra. O filme segue e o artista indica o argumento que nos guiará por toda exposição. Marteladas destroem o que antes eram vigas e o carvão explode no papel desenhando o cosmos. O universo é sobra, explosão, big bang. Repousa aqui a ambiguidade dos incêndios, apesar de devastador, revela a força de gerar outro porvir, das células ao espaço. Neste ciclo originaram-se cada um das obras desta exposição.

Com um imaginário muitas vezes construído em cima de fotografias, o artista cobre o papel com pó, pastel, carvão, cola e outros materiais que geram um “fundo” que alude literalmente ao macrocosmo, concebido em micro partículas e células. Dentro dessas superfícies, Kilian incorpora referências simbólicas a objetos, figuras ou lugares e, através deles, codifica sua própria história.

Macrocosmos, microcosmos ou, a cosmogonia dos Incêndios, marca a volta de Kilian Glasner às séries anteriores em um ato final que inverte o sentido das criações precedentes. Agora a ruína não mais é representação, ela salta do papel para presença, testemunha o que foi consumido e aponta, ao mesmo tempo, para aquilo que pode emergir, o sonho.

Paulo Kassab Jr.

1. Resíduo. Carlos Drummond de Andrade In A Rosa do Povo, José Olympio, 1945