Variações do corpo selvagem

“Estamos vivendo num mundo onde somos obrigados
a mergulhar profundamente na terra para
sermos capazes de recriar mundos possíveis”
Futuros Possíveis, de Ailton Krenak

Em O pensamento ecológico, o filósofo e crítico literário inglês Timothy Morton defende que o inconsciente é como uma região selvagem. As regiões selvagens são o incônscio da sociedade moderna, lugares onde podemos ir para garantir que nosso sonhos continuem imperturbados. A própria forma da consciência moderna é esse sonho, por onde realizamos a construção de nossas conexões com aquilo que acreditamos, com o selvagem que habita em nós, com a verdade que acreditamos nos levar em direção a nossa essência. São nas construções de espaços possíveis a partir do que a terra nos propicia de forma ancestral que reside um dos pilares da pesquisa de Saulo Szabó, que apresenta sua primeira exposição individual no projeto Lumiar, da Galeria Lume.

O processo é parte fundamental para o entendimento criativo do artista nascido no Rio de Janeiro e radicado na capital paulista, que há quase uma década constrói minuciosamente uma biblioteca de referências naturais para compor suas obras. Formado em arquitetura, Szabó utiliza-se da transformação da matéria para criar em seu entorno uma infinidade de futuros possíveis, desenvolvendo conexões muitas vezes perdidas entre reinos animal, vegetal e mineral. Como se cada espécie fosse a metamorfose de todas aquelas que vieram antes dela, em “uma mesma vida que molda para si um novo corpo e uma nova forma para existir de maneira diferente”, como observa o filósofo italiano Emanuele Coccia em seu instigante A vida secreta das plantas.

A construção das obras exibidas no espaço expositivo parte muitas vezes da memória, seja ela humana ou vegetal. É a partir da lembrança de momentos vividos por aqueles que rodeiam o artista que desponta seus projetos escultóricos. Para a construção deles, Szabó mapeia as sombras produzidas pelos corpos humanos em posições de desconforto e, na sequência, de auto acolhimento. É dessa forma que nascem as primeiras delimitações das peças tridimensionais. Em uma sobreposição de tais sombras, criam-se espécies de topografias que vão se transformando a partir do ato de esculpir a matéria. Os sedimentos usados são uma mistura de materiais usados na construção de habitações, como o concreto, e elementos naturais coletados pelas andanças de Szabó Brasil adentro.

Essas incessantes coletas dão origem também à série Processual, políptico de imagens que o artista apresenta no espaço. Nasce, assim, um painel composto por fotografias de todos os materiais usados nas obras exibidas, de carvões a pedras, passando por diferentes cristalizações e tipos de terra que se transformam em tintas. A essa manifestação final adere-se a interação do espectador. É necessário tocar, sentir, abraçar e especular tais produções para que elas ganhem o corpo imaginado por ele.

Tais materiais também são utilizados para desenhos de giz natural em papel japonês. As figuras do reino vegetal que aparecem ali nos levam a repensar seus componentes medicinais e tecnologia ancestral de cura e transformação. E a utilização das plantas com suporte segue além. São elas que servem de matriz para um delicado processo de frotagem, criando monotipias de tais espécies pintadas com os próprios pigmentos desenvolvidos pelo artista. A feitura de tais tintas é o ponto de partida de sua produção e nasce de seu interesse pela diminuição do consumo de materiais industriais e danos causados ao meio ambiente. Todo esse processo é parte fundamental de sua prática artística, que busca elaborar novas conexões entre o ser humano e o que está ao redor.

As formas orgânicas conduzem o espectador pela exposição, como um rio a ser navegado e pelo qual é possível observar suas margens e apropriar-se das matérias que ali circundam. Szabó nos convida a caminhar com ele entre matas e cachoeiras, na incessante busca pela nossa própria essência. Como bem nos lembra o mestre quilombola Antônio Bispo em A Terra dá, a terra pede, “somos diversos, cosmológicos e naturais”. É sobre esse retorno instintivo que fala o artista e é por meio de suas obras que ele nos permite uma conexão com o natural, sem nunca esquecer a humanidade.

Ana Carolina Ralston
curadora