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Nazareno e a voz da pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

João Cabral de Melo Neto

Hoje, ao que se apresenta ao mundo como arte, é a voz “inenfática” de Nazareno (1967): é do silêncio da pedra que extraímos as formas de existência de sua produção artística. Ao ter a pedra como matéria-prima e signo – em suas várias origens e sedimentos, qualidades e formas, o artista opera novos gestos poéticos e conceituais, longe da candura e da delicadeza que sua produção parece evocar. Reunindo seis obras/séries inéditas, gestados desde 2022, a exposição Faz tempo que aquele buraco não sobe na parede, insere mais uma nova razão de medida em seus trabalhos escultóricos: a onipresença do tempo. A ideia de duração (e sua tomada de consciência) é uma das maiores lições que as pedras de nossos caminhos e vivências parecem dar.

Por meio de um claro rigor conceitual, lição bem apreendida de uma tradição da arte conceitual que Nazareno herdou, e com uma compreensão aguda da força expressiva do corpo objetual que vem permeando sua produção há anos, o artista encontra agora a ocasião propícia para uma investigação completa e circular da existência e do tempo da arte. Como nos ensinou um dos nossos maiores poetas, a “educação pela pedra” se faz, primeiro, de fora para dentro e, em seguida, de dentro para fora: uma espécie de vida cíclica de vivência interior e exterior, algo latente em muito das produções do artista. Mas, repare: há sempre um modus operandi centrado em um humor cortante que subverte as considerações morais que nos guiam cotidianamente e deturpam nossas noções escalares do espaço.

Dizer pelo silêncio. É essa, talvez, a intenção primeira das obras que defrontamos ao longo do espaço expositivo. De imediato, são duas presenças essenciais que chamam a noção atenção: uma que está ao rés do chão e conforma retângulo e outra que está na vertical e conforma um círculo. Na parede, vemos um alvo, composto por uma espessa camada de pedra, definida por circos concêntricos de formas e cores dos sedimentos ali encontrados. Denominada ironicamente de Você foi feito pra mim, a obra enseja um lugar de captura e sedução do olhar, uma forma análoga ao próprio globo ocular. E, defronte dela, uma paisagem da terra de serpentes, um grande tapete de pedra, intitulado Passagens. Trata-se um possível território de transformação que atrai e repele pela figuração das cobras. Aliás, a cobra é bicho presente nas mais variadas culturas ancestrais. Ambas em diálogo, são obras que põem em duelo nossas percepções: a apaziguadora ideia de beleza e a perturbadora ideia de sublime. Ao mesmo tempo, são simultaneamente peças escultóricas que contêm muita informação e nos convidam ao mergulho interior de seus veios, feitas de sedimentos dos tempos da matéria.

Nascer do chão. É a segunda lição que aprendemos nessa paridade de pedras cortadas, esculpidas e polidas. É de onde pisamos que brota a origem. É nesse mesmo plano moldado da terra que as cobras trocam a sua pele e constroem caminhos. É nesse chão de pedra que ritualizamos a vida e determinamos nosso território de convívio. Também, nos pomos em equilíbrio sobre o solo e direcionamos o olhar para o horizonte, o repositório de nossos alvos. Quando Nazareno me narrou a existência desses seus trabalhos não pude deixar de lembrar de uma imagem específica da história da arte: o registro da exposição efeméride “Mágicos da Terra”, ocorrida em Paris, no ano de 1989.

Guardando as devidas proporções e razões históricas, foi no ambiente do Parque La Vilette, em um dos braços da curadoria do historiador francês Jean-Hubert Martin, que as duas obras foram dispostas em uma mesma forma de composição: na parede, o Red Earth Circle, do artista inglês Richard Long, um dos percursores da land art, e, no piso, um grande chão pictórico com desenhos tradicionais dos Yuendumu, parte da comunidade aborígine australiana. Esse confronto entre tempos civilizacionais, criava um diálogo formal das entranhas sinuosas da terra ali dispostas no retângulo e a pureza concêntrica do grande alvo na parede. Há, em ambos os casos, uma vontade extração do que é interior para que se alcance a superfície da visão.

Gerar trajetórias pela presença. É talvez o movimento que se cria após a extração da pedra, seguido de um exercício arbitrário de escolha de qual parte da pedra sedimentada queremos. O artista traz para unidade de pedra compacta, de “sua carnadura concreta”, uma vontade escultórica, gerando vazios, todos eles entrecortados por volumes de alturas e formas diferentes. São os “Circos de pulgas” de Nazareno: uma espécie de mundo arquitetônico que vemos acontecer a partir de uma vista de topo. Há, nesse caso, uma inversão de escala, dos espaços construído de uma cidadela. Tais circos podem ser também maquete, encenação ou ilustração de uma ideia. Nesse contexto, não há como não lembrar do projeto Cães de caça, do artista Hélio Oiticica, gestado no início dos anos 1960. Podemos dizer que, em ambos os casos, há o anúncio possível para um labirinto e a disposição da dúvida.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e, se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Ter consciência de sua insignificância. É algo que pouco se tem introjetado ao longo da vida. Se o labirinto anterior desorienta, é no mar ou no deserto que nossa solidão aflora e as razões de nossa presença perdem significado. Se falamos a partir do Brasil, não há como não evocar a imensidão íntima do Sertão. Em sua maioria, são das pedreiras do Ceará ou do Piauí, das montanhas das Minas Gerais e das paisagens interioranas do Espírito Santo que extraímos a pedra que sustenta, orna e decora. Uma viagem ao interior é literalmente ir ao encontro da paisagem amplificada, que em seu revés tem o horizonte infinito do mar. Na obra De acordo, as cadeiras em pedra do artista nos colocam no impasse: o caminho é de dentro para fora ou de fora para dentro?

Confabular a partir do sonho. É talvez esse o desejo que nos é contaminado pela presença de travesseiros. Nomeados Num lugar desconhecido, os travesseiros em pedra – uma contradição explícita entre matéria e função – aludem à efeméride do sonho, da imaginação ou do devaneio. São no gesto do descanso e do sono que são sedimentados a grande maioria de nossas ideias e desejos, mesmo que ceifados pelas nossas normas de condutas e nossos traumas em vida. Talvez seja nessa série de objetos que o jogo semântico do artista é mais bem sublinhado. Todos os sinais que afetam nossa percepção são trocados pelo artista: como repousar por sobre um travesseiro que não mexe e não se molda? Como trazer a imaterialidade do sonho diante do peso da memória sedimentada em pedra?

Viver pela memória. Tenho para mim que essa seja a melhor lição apreendida a partir da obra de Nazareno hoje: a onipresença da memória. É a partir dela que o tempo assume seu lugar soberano. Assim como a pedra, a memória é onde melhor retemos o tempo. Toda lembrança em vida, todo sonho sonhado, toda construção racional e sensitiva, nasce do jogo permanente da memória. Não falo aqui no simples recordar dos fatos e informações. Chamo a atenção para o que, diariamente, guardamos; seja pelos nossos sentidos físicos, retóricos ou espirituais. O artista, nos faz, ao fim e à cabo, olhar com atenção para o chão. E, ali, naquele outro chão de pedra (que também poderia ser parede) nos convida a jogar seu Jogo da memória. Voltamos então às palavras, silenciadas no começo e agora gravadas em sulcos na pedra: só que diante desse mar de signos e sons gravados a responsabilidade pela composição é única e exclusivamente sua.

Ao contrário do que parecia ser a tônica da produção de Nazareno, a palavra em composição poético-afirmativa parece não ter vez por agora. É uma responsabilidade cognitiva dada, portanto, ao espectador ativo. Assim como nos ensinou Marcel Duchamp no alvorecer do século XX e Piero Manzoni em meados desse mesmo século, a arte não está aqui para ensinar. Ou melhor, não acontece como educação formal, mas sim como inutilidade imprescindível que nos coloca em desvio, no lugar do desconforto comum ao dissenso ou ao enfrentamento.

Na presença da pedra não há como escapar: sua resistência fria e o seu peso gravitacional acumula e sobrepõe todos os nossos tempos. Desse modo, com a obra do artista, não há conforto. Acostume-se com a ausência dele, pois “faz (algum) tempo que aquele buraco não sobe (mais) na parede”.

Diego Matos,
maio de 2023.