Renata Egreja: uma crônica mole
Na entrada da galeria, uma pintura de fundo esverdeado recebe os visitantes. Ela é estruturada por uma forma oval, algo vacilante, da qual se desprendem dois “sacos” marrons, vazados. Na parte superior, alguns elementos em forma de meia-lua, mais opacos, parecem lhe dar sustentação. Mas as tintas escorrem, criando uma atmosfera aquática, em que as formas negociam sua coexistência.
Ao seu lado, duas pequenas pinturas lembram sementes ou bagos: seres-bolsas à espera de germinar novas formas de vida. Uma das “sementes”, dentada e brilhante, parece também flutuar numa atmosfera líquida, sem que tenha um destino predeterminado. A segunda, uma forma composta por três gotas marrons, talvez esteja na iminência de se desprender do ser-matriz para transformar-se em outra coisa.
Nas obras de Renata Egreja não existe síntese, ou seja, uma resolução inequívoca dos elementos que as compõem; eles estão sempre em negociação, em movimento. Não numa harmonia orquestrada (por alguém que se sobressai), mas como uma abundância de seres que se combinam, se repelem, se misturam e se transformam, às vezes absorvendo uns aos outros.
Cachepot
, 2023Cachepot 2
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Nos termos da escritora Ursula K. Le Guin, as pinturas de Egreja já não contam a estória de um Herói, mas da própria vida que acontece, em movimento incessante; mole como a “bolsa da ficção”:
todos nós já ouvimos tudo sobre todos os paus e lanças e espadas, sobre as coisas para esmagar e espetar e bater, as longas coisas duras, mas ainda não ouvimos nada sobre a coisa em que se põem coisas dentro, sobre o recipiente para a coisa recebida. Essa é uma estória nova. […] E, no entanto, antiga.
Antiga porque, segundo a autora, a estória da bolsa é a própria estória da humanidade, contrária àquela do assassino-herói que, ao se estabelecer no imaginário comum, acabou por esconder dela (e de nós) o senso de pertencimento.
Semente
, 2023Pesquisas arqueológicas estabeleceram que, para “manter a barriga cheia”, a humanidade ocupou-se de coletar “sementes, raízes, brotos, rebentos, folhas, nozes, bagas, frutos e grãos, além de insetos e moluscos, assim como capturar aves, peixes, ratos, coelhos e outros pequenos animais […]”. E depositaram-nos em bolsas, sacos ou trouxas, a fim de guardar um pouco de energia para depois. Le Guin afirma também que “a pessoa pré-histórica mediana podia viver bem com cerca de quinze horas de trabalho semanal”, o que, conclui, “deixa bastante tempo para outras coisas” — como nadar no rio, inventar uma música, dormir, desenhar, enfeitar os cabelos, observar o céu.
Em duas pinturas de Egreja, um amarelo brilhante irradia para além da tela e faz brotar plantas-invólucros, que podem ser flores mas também sementes. Em Peregrina, a maior obra da exposição, dois grandes elementos, transparentes e “moles” parecem se movimentar, junto de outro, mais fino, que flutua. Atrás deles, há uma mistura intensa de amarelos, vermelhos e rosas, além de grãos de purpurina brilhante. A diluição faz com que os pigmentos se contaminem uns aos outros, criando passagens cromáticas desenhadas pela água. É como se a estória, ou a crônica de um acontecimento banal, jamais se fechasse em contornos sólidos.
Em outra pintura, predominantemente cor-de-rosa, há um recipiente em formato de gota, que contém cinco outros “seres” — impossível decidir se são parasitas ou aliados numa relação simbiótica. Atrás do recipiente, e às vezes sobreposta, está uma “grade” colorida, que não se fecha, elemento recorrente nas obras de Egreja. Santa Tereza, obra iniciada anos atrás, foi coberta agora por tons escuros, deixando a silhueta de um elemento vazado que lembra um galho com folhas. Mas permanecem resquícios de bolas, bagos, meias-luas e “grades”, como que vivendo num mundo subterrâneo. Uma série de aquarelas recentes figuram outros seres, que também negociam seu lugar em composições excêntricas, isto é, descentralizadas, como numa dança.
Vasos e potes de cerâmica também contêm pinturas e o potencial acolhimento de uma infinidade de coisas: sementes, líquidos, pedras, pigmentos, frutas. São recipientes que, nas palavras de Le Guin, contêm a possibilidade de se escrever novas estórias, cheias “de começos sem fim, de iniciações, de perdas, de transformações e traduções, e muito mais artimanhas do que conflitos, muito menos triunfos do que armadilhas e delírios”.
Santa Tereza
, 2017Mas não se trata da nostalgia de um lugar bucólico. Algumas palavras soltas, desenhadas nas cerâmicas, fazem lembrar da equivalência cultural moderna entre a exploração do território e os corpos percebidos como femininos. A floresta “virgem”, a terra “fértil” que, de acordo com as estórias dos “paus e lanças e espadas”, estariam disponíveis ao desejo do herói-colonizador. E este, em seu percurso, acaba por aniquilar uma extraordinária diversidade de seres e de relações.
Se a vida não é útil, como disse Ailton Krenak, tampouco ela é dócil. As crônicas moles materializadas por Egreja não são a fabulação de um ideal totalizante: trata-se da própria vida que acontece, instável, movediça. Que traz em si a potência da transformação, inclusive a de fazer apodrecer todos aqueles que imaginavam outros seres como “disponíveis”. Assim, os nutrientes espoliados se renovam, e podem germinar um sem-fim de sementes, bagos, terras, frutos e, por que não?, estórias.
Mariana Leme
As citações de Ursula K. Le Guin foram retiradas do ensaio “A teoria da bolsa da ficção”. São Paulo: n-1, 2021. Tradução de Luciana Chieregati e Vivian Chieregati Costa. A versão original, “The Carrier Bag Theory of Fiction”, foi publicada nos Estados Unidos em 1986.
Renata Egreja
São Paulo, Brasil, 1984. Vive e trabalha em Ipaussú, Brasil.
A pintura como alegoria da vida. Para a artista plástica paulistana Renata Egreja, a pintura é uma festa, uma celebração da vida e o fio condutor de seu pensamento. Aos 38 anos e 14 de carreira, Renata dividiu sua formação entre São Paulo e Paris. Vive e trabalha hoje no interior de São Paulo, com ateliê em uma fazenda na pequena cidade de Ipaussu. Vinda de uma família de agricultores, cresceu no meio rural e sempre teve a natureza como inspiração. Apaixonada por pintura desde pequena, sua primeira incursão profissional nas artes foi trabalhando com alegorias em escolas de samba do Rio (Mocidade Independente de Padre Miguel) e de São Paulo (Nenê de Vila Matilde). E dessa festa da ancestralidade tira muito dos efeitos visuais, glitter, purpurina e alegria para a sua arte. Iniciou os estudos em Artes Plásticas na FAAP-SP, graduou-se na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris, onde fez também seu mestrado e iniciou sua carreira no circuito das artes. No Brasil, participou de diversas exposições individuais e coletivas no Instituto Tomie Ohtake, Paço das Artes, Zipper Galeria, Galeria Lume, Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba, Museu de Arte de Curitiba, Sesc, dentre outros espaços. No exterior, teve obras expostas em Milão (Itália), Frankfurt (Alemanha) e Nova Déli (Índia). Possui trabalhos em acervos públicos e privados que trazem uma explosão de cores e de energia em suportes variados: telas, aquarelas sobre papel, pintura em óleo, acrílica, costura, cerâmica, escultura, vídeos, desenhos e instalações. Em comum, uma viva paleta de cores e sonhos sempre aquecidos. As criações renderam prêmios como o Jovens Talentos, da Université Paris-Dauphine, em 2010; o Itamaraty de Arte Contemporânea, em 2012, e o Itamaraty Sanskriti Foundation, em 2013. Suas pinceladas viraram também moda, obras de vestir. A artista assinou coleção para a grife italiana Salvatore Ferragamo, dentre outras. Nos últimos anos, desde que se tornou mãe de duas meninas, Bia e Paloma, Renata tem se dedicado também a questões de gênero e à luta pelos direitos das mulheres. Sinal de que festa e luta andam sempre de mãos dadas.
Cachepot
, 2023Renata Egreja
Cachepot 2
, 2023Renata Egreja
Semente
, 2023Renata Egreja
Quiescência
, 2023Renata Egreja
Pólen
, 2023Renata Egreja
Santa Tereza
, 2017Renata Egreja