A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
Por vinte, vinte contos.

 

Carlos Drummond de Andrade

Sem a intermediação dos mobiliários e utensílios, uma casa surge como um museu vazio, sem recordações, lembranças ou culpas. À espera dos móveis, cada qual com seu canto e função predefinidos, o espaço doméstico relembra uma cena expositiva onde todo objeto inserido oculta uma história. Nas gavetas, retratos, passaporte, cartas e saudade. Na estante as marcas do altar, as velas, a mancha do copo nas noites de sede. No batente da porta, o tamanho dos filhos, o passar dos anos. Em suas novas formas, os móveis moldam-se à vida que habita o seu entorno. Certa vez, em Lisboa, escutei a história de uma senhora portuguesa que guardava a escrivaninha de seu falecido marido, poeta. No tampo do móvel, entre os veios da madeira, ficaram gravadas palavras sobrepostas, vestígio da escrita em madrugadas de poesia.

Talvez, o acomodar das coisas, a mera utilidade, seja a menor das funções dos móveis. Transformados pelo tempo em memória, espelho dos nossos gestos, os objetos ficam marcados, desfiam, lascam, dobram e ganham vida, atuam serenamente como observadores dos nossos acontecimentos mais íntimos.

Em “Fio: Gaveta de si, Ofício de ser”, de Francisco Nuk, a utilidade e a serventia dos mobiliários são desmanchadas no momento em que o artista quebra sua rigidez, fazendo do absurdo um conceito perseguido. Tudo em sua obra abre para pistas deturpadas. As cristaleiras distorcidas não mais equilibram os cristais, as gavetas flutuam leves sem o peso dos segredos arquivados, a cômoda circular, cautelosamente esculpida, confunde os guardados.

Na repetição, no jogo da imaginação e na constância do ofício, Francisco elabora suas esculturas com a intimidade de um poeta. As madeiras, enamoradas, se rendem, dançam e se livram do fardo de servir. Agora são arte. Nada mais.

Paulo Kassab Jr.