Cabeça de Tempestade
E se cada palavra se repetisse como os ponteiros de um relógio? E se cada palavra se repetisse? Se cada palavra se repetisse como o tempo, as estações. E se? Repetissem como se fosse ontem, mas voltassem tortas, aleatórias, instáveis? Primavera, verão, outono, inverno, primavera, verão, outono, inverno, inverno, inverno, verão, verão… que nada mais se prevê. Nem bússolas, nem birutas, mapas meteorológicos, aplicativos ou tábuas das marés. A sirene soou e ninguém ouviu. A palavra virou mar bem antes do sertão. A sirene soou e ninguém ouviu. A tempestade engoliu o verbo e com ele a fala, os avisos, os símbolos. É curiosa a expressão utilizada para descrever o ponto de maior intensidade de uma tormenta, geralmente associada a fenômenos meteorológicos como furacões, ciclones tropicais ou tufões: cabeça de tempestade. A gente nomeou, mas não percebeu.
Inquieto, angustiado – cabeça de tempestade, Kilian Glasner repete a Grande Onda de Kanagawa1, homenagem em pastel e pigmento puro. “O desenho das ondas é uma espécie de versão divinizada do mar, feita por um artista que viveu o terror religioso do oceano avassalador que cercava completamente seu país, impressiona pela fúria repentina de seu salto ao céu, pelo azul profundo do lado interior de sua curvatura, pelo respingo de sua crista que espalha um orvalho de pequenas gotas”. A análise sobre a obra de Hokusai é de Edmont de Goncourt, de meados dos anos 1850. O desenho das ondas é uma espécie de versão divinizada do mar, feita por um artista que viveu o terror religioso do oceano avassalador que cercava completamente seu país… e se as palavras voltassem emprestadas a novos significados?
Mais de 170 anos depois, dois mil e vinte e um, a casa transmutada em cinzas, pandemia, desgoverno. Kilian se isola no mar. Pesquisa a oscilação das águas, o humor das marés. De dentro assiste outras tempestades, ansiedade, insegurança, aflição. Ninguém previu: nem bússolas, nem birutas ou mapas meteorológicos… é neste cenário que surge “ensaio sobre o ingovernável”. Antes seria evitável, mas alguém escutou a tempestade? Desde então, o pantanal queimou, as marés subiram, a lama caiu sobre o litoral e, todos nós, que ensurdecemos em nossa arrogância, caímos juntos. E “por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? ”, perguntaria Ailton Krenak.
Paulo Kassab Jr.
1. Hokusai, Katsushika. “A Grande Onda de Kanagawa.” Século XIX, Ukiyo-e, Museu Metropolitano de Arte, Nova York.
2. AILTON Krenak, Idéias para adiar o fim do mundo. Pag 14 – Companhia das Letras