No imaginário, a sexualidade aparece sempre como libertária, a fuga ao prazer, a permissão à espontaneidade dentro da obediência capitalista. Seria, como definiu Silvia Federici1 , aquilo “que é vendido para nós como o “outro” do trabalho: um espaço de liberdade no qual presumivelmente podemos ser quem realmente somos — uma possibilidade de conexões íntimas e “genuínas” em um universo de relações sociais no qual somos constantemente forçados a reprimir, o que desejamos.” No entanto, criamos regras, definimos tempos, responsabilidades, encargos, normas, cerceamos a carne. Tudo o que não é reprodutivo é obsceno. Toda liberdade é vigiada.
Neste caráter ambíguo das relações sexuais, a mulher é quem mais sofre, carregando a responsabilidade pelo prazer alheio de tal forma, que o sexo passa a ser um dever e a obrigação de proporcionar prazer aos homens surge como parte essencial do que se espera das mulheres em uma sociedade patriarcal. Mas quem cala o gesto, violenta o desejo, automatiza a libido, faz do sexo um trabalho? Quem são os agentes controladores do corpo?
A exposição “Segredo”, de Flavia Ventura, irrompe desta questão. Assumindo a representação histórica do corpo da mulher e a pornografia como símbolos explícitos da manipulação e dos repulsivos apetites criados por uma sociedade machista, a artista propõe uma releitura de imagens imersas neste universo. A escolha pela revisão é sagaz, permite editar e silenciosamente expor as consequências da exploração secular destas representações.
Se o propósito inicial da obra é apaziguar a violência na cena e desobjetificar a mulher, o gesto é simples: suprime-se o homem. Porém, nas telas da artista este apagamento surge muito mais sutil do que aquele que nós, homens brancos, cis, héteros, pais, irmãos, maridos, namorados infligimos por séculos às mulheres, subtraindo-as da história, impondo normas e padrões de desempenho aos seus corpos.
Preenchidas por diversas matizes de tons terrosos, as pinturas de Flávia parecem estar em movimento contínuo, vivas, com a energia erótica do gesto, alternando obstinadamente entre o abstrato e figurativo. Aos poucos, corpos femininos emergem e, fluidos, se enlaçam, dançam e gozam. A tinta convertida em pele, abraça a forma humana e re-escreve o desejo, o sensível e o direito ao abençoado2 deleite.
Paulo Kassab Jr.