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Renata Egreja: uma crônica mole

Na entrada da galeria, uma pintura de fundo esverdeado recebe os visitantes. Ela é estruturada por uma forma oval, algo vacilante, da qual se desprendem dois “sacos” marrons, vazados. Na parte superior, alguns elementos em forma de meia-lua, mais opacos, parecem lhe dar sustentação. Mas as tintas escorrem, criando uma atmosfera aquática, em que as formas negociam sua coexistência.

Ao seu lado, duas pequenas pinturas lembram sementes ou bagos: seres-bolsas à espera de germinar novas formas de vida. Uma das “sementes”, dentada e brilhante, parece também flutuar numa atmosfera líquida, sem que tenha um destino predeterminado. A segunda, uma forma composta por três gotas marrons, talvez esteja na iminência de se desprender do ser-matriz para transformar-se em outra coisa.

Nas obras de Renata Egreja não existe síntese, ou seja, uma resolução inequívoca dos elementos que as compõem; eles estão sempre em negociação, em movimento. Não numa harmonia orquestrada (por alguém que se sobressai), mas como uma abundância de seres que se combinam, se repelem, se misturam e se transformam, às vezes absorvendo uns aos outros.

Nos termos da escritora Ursula K. Le Guin, as pinturas de Egreja já não contam a estória de um Herói, mas da própria vida que acontece, em movimento incessante; mole como a “bolsa da ficção”:

todos nós já ouvimos tudo sobre todos os paus e lanças e espadas, sobre as coisas para esmagar e espetar e bater, as longas coisas duras, mas ainda não ouvimos nada sobre a coisa em que se põem coisas dentro, sobre o recipiente para a coisa recebida. Essa é uma estória nova. […] E, no entanto, antiga.

Antiga porque, segundo a autora, a estória da bolsa é a própria estória da humanidade, contrária àquela do assassino-herói que, ao se estabelecer no imaginário comum, acabou por esconder dela (e de nós) o senso de pertencimento.

Pesquisas arqueológicas estabeleceram que, para “manter a barriga cheia”, a humanidade ocupou-se de coletar “sementes, raízes, brotos, rebentos, folhas, nozes, bagas, frutos e grãos, além de insetos e moluscos, assim como capturar aves, peixes, ratos, coelhos e outros pequenos animais […]”. E depositaram-nos em bolsas, sacos ou trouxas, a fim de guardar um pouco de energia para depois. Le Guin afirma também que “a pessoa pré-histórica mediana podia viver bem com cerca de quinze horas de trabalho semanal”, o que, conclui, “deixa bastante tempo para outras coisas” — como nadar no rio, inventar uma música, dormir, desenhar, enfeitar os cabelos, observar o céu.

Em duas pinturas de Egreja, um amarelo brilhante irradia para além da tela e faz brotar plantas-invólucros, que podem ser flores mas também sementes. Em Peregrina, a maior obra da exposição, dois grandes elementos, transparentes e “moles” parecem se movimentar, junto de outro, mais fino, que flutua. Atrás deles, há uma mistura intensa de amarelos, vermelhos e rosas, além de grãos de purpurina brilhante. A diluição faz com que os pigmentos se contaminem uns aos outros, criando passagens cromáticas desenhadas pela água. É como se a estória, ou a crônica de um acontecimento banal, jamais se fechasse em contornos sólidos.

Em outra pintura, predominantemente cor-de-rosa, há um recipiente em formato de gota, que contém cinco outros “seres” — impossível decidir se são parasitas ou aliados numa relação simbiótica. Atrás do recipiente, e às vezes sobreposta, está uma “grade” colorida, que não se fecha, elemento recorrente nas obras de Egreja. Santa Tereza, obra iniciada anos atrás, foi coberta agora por tons escuros, deixando a silhueta de um elemento vazado que lembra um galho com folhas. Mas permanecem resquícios de bolas, bagos, meias-luas e “grades”, como que vivendo num mundo subterrâneo. Uma série de aquarelas recentes figuram outros seres, que também negociam seu lugar em composições excêntricas, isto é, descentralizadas, como numa dança.

Vasos e potes de cerâmica também contêm pinturas e o potencial acolhimento de uma infinidade de coisas: sementes, líquidos, pedras, pigmentos, frutas. São recipientes que, nas palavras de Le Guin, contêm a possibilidade de se escrever novas estórias, cheias “de começos sem fim, de iniciações, de perdas, de transformações e traduções, e muito mais artimanhas do que conflitos, muito menos triunfos do que armadilhas e delírios”.

Mas não se trata da nostalgia de um lugar bucólico. Algumas palavras soltas, desenhadas nas cerâmicas, fazem lembrar da equivalência cultural moderna entre a exploração do território e os corpos percebidos como femininos. A floresta “virgem”, a terra “fértil” que, de acordo com as estórias dos “paus e lanças e espadas”, estariam disponíveis ao desejo do herói-colonizador. E este, em seu percurso, acaba por aniquilar uma extraordinária diversidade de seres e de relações.

Se a vida não é útil, como disse Ailton Krenak, tampouco ela é dócil. As crônicas moles materializadas por Egreja não são a fabulação de um ideal totalizante: trata-se da própria vida que acontece, instável, movediça. Que traz em si a potência da transformação, inclusive a de fazer apodrecer todos aqueles que imaginavam outros seres como “disponíveis”. Assim, os nutrientes espoliados se renovam, e podem germinar um sem-fim de sementes, bagos, terras, frutos e, por que não?, estórias.

Mariana Leme

As citações de Ursula K. Le Guin foram retiradas do ensaio “A teoria da bolsa da ficção”. São Paulo: n-1, 2021. Tradução de Luciana Chieregati e Vivian Chieregati Costa. A versão original, “The Carrier Bag Theory of Fiction”, foi publicada nos Estados Unidos em 1986.