Milhões de quilômetros separam os planetas Terra e Vênus, variando de acordo com a posição de suas órbitas. Os traços dessas zonas poderiam ser projetados através dos borrões que preenchem esses caminhos, salpicados de luz se apresentam em meio a tantas brumas.

Gosto de pensar sobre o fascínio que ocorreu em Clara ao criar com Vênus, onde o desconhecido se conjuga como possibilidade e também caos, ao invés de subtrair perspectivas sobre aquilo que não se tem domínio.

O equilíbrio e a simetria, tão presentes nos estudos sobre proporção ao longo da história da arte ocidental, já não são definidores para a construção de um senso de valores sobre o desenho; existem espaços para distorções e tremores.

Aprende-se a caminhar de uma outra forma, os pés já não são suficientes para cada passo, faz-se necessário uma nova camada que se envolve para compreender a densidade deste novo trajeto.

Há uma característica muito presente nos desenhos aqui compartilhados, zonas são definidas pela esfumatura dos materiais, seja do carvão, do grafite ou da sanguínea.

Há luz gerada entre claro-escuros e essas conversas redefinem os próprios limites das figuras, acentuando-as num mistério e num encantamento.

Clara decidiu olhar com olhos de Vênus. Ele é um planeta rochoso, e até então, o que sabemos, é de sua ambiência hostil para o corpo humano, suas temperaturas elevadas que chegam a um calor máximo e sua atmosfera densa composta principalmente por dióxido de carbono; esses elementos tornam impossível a habitação de qualquer forma de vida em sua superfície.

O movimento, então, de olhar como uma venusiana, de ser/estar/viver Vênus, seria uma articulação que surge do improvável, uma certa astúcia do imaginar e reconhecer que esse planeta, que é o mais próximo da Terra, nos transforma numa radicalidade tão viva quanto o Sol e a Lua. No entanto, podemos dizer que somos compostos por elementos que têm origem em Vênus e em outros corpos celestes.

Os elementos químicos que compõem o nosso corpo, como carbono, oxigênio, nitrogênio, ferro, entre outros, foram formados no interior de estrelas através de processos nucleares.

Esses elementos foram disseminados pelo universo através de eventos como supernovas e, eventualmente, se agregaram para formar planetas, incluindo a Terra e Vênus. Sem condicionar a vida venusiana a uma iconografia única, mas sem ignorar todo o erotismo que este planeta traz em sua associação greco-romana, a artista complexifica as relações possíveis com esta irradiação de Vênus, o atrelando ao feitiço, a sua geologia, a astronomia, a astrologia e ao tarô.

Podemos quase traçar uma genealogia das Vênus na história, sempre associadas ao aspecto feminino, nomeadas a partir da repetição da mitologia clássica ocidental e cristalizadas pela pintura renascentista de Botticelli. No entanto, estão também ligadas a diversos artefatos de culturas distintas, que continuam a ser traduzidos a partir dessa mesma cosmologia. Nesse sentido, no processo para a exposição a artista retoma diálogos com a pesquisadora, curadora e astróloga Rita Vênus, em uma conversa oracular onde discutiram sobre uma analogia dos planetas desde o polímata persa Al-Biruni.

Gostaria de trazer duas passagens sobre a deambulação de escritores muito distintos sobre este Planeta, em Delta Vênus a escritora Anaïs Nin traz-nos onde uma de suas personagens fala sobre a observação de sua própria vulva através de um espelho: “Assim tinha nascido Vênus do oceano, com aquela pequena semente de salgado mel dentro de si”. Um pouco antes, em 1953, Isaac Asimov cria um universo de histórias a partir dos planetas que circundam o Sol, e em um tempo que se acreditava na superfície de Vênus tomada por água, o autor cria Os Oceanos de Vênus e em seu prefácio de 1978, Asimov defende sua narrativa, admitindo que no desenrolar da ciência frente às definições sobre Vênus, seu livro ainda sim é relato de aventuras e que gostem dela, apesar das descrições que eram fiéis à época em que escreveu.

Imersa na astúcia do imaginar, Clara nos convida a olhar com olhos de Vênus, a enxergar não apenas o desconhecido como possibilidade e caos, mas também como a essência primordial que nos compõe. Seu processo transcende a mera representação do planeta rochoso, adentrando um cosmos de relações em encontro a diversas leituras possíveis. Ao amalgamar o erótico, o mítico e o científico, ela nos leva a deambular pelos caminhos encantados de Vênus, onde a beleza e o mistério se entrelaçam em cada traço, convidando-nos a explorar não só o espaço exterior, mas também os universos interiores que ecoam a pulsante vida venusiana que habita em nós.

Ariana Nuala
Maio de 2024