Fio: Gaveta de sí, ofício de ser

    Fio: Gaveta de sí, ofício de ser

    Viewing Room
    Curadoria: Paulo Kassab Jr.
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    A casa foi vendida com todas as lembranças
    todos os móveis todos os pesadelos
    todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
    a casa foi vendida com seu bater de portas
    com seu vento encanado sua vista do mundo
    seus imponderáveis
    Por vinte, vinte contos.

    Carlos Drummond de Andrade

    Sem Título

    , 2021

    Exposição Francisco Nuk
    Fio: Gaveta de si, Ofício de ser

    Sem a intermediação dos mobiliários e utensílios, uma casa surge como um museu vazio, sem recordações, lembranças ou culpas. À espera dos móveis, cada qual com seu canto e função pré definidos, o espaço doméstico relembra uma cena expositiva onde todo objeto inserido oculta uma história.

    Nas gavetas, retratos, passaporte, cartas e saudade. Na estante as marcas do altar, as velas, a mancha do copo nas noites de sede. No batente da porta, o tamanho dos filhos, o passar dos anos. Em suas novas formas, os móveis moldam-se à vida que habita o seu entorno.

    Certa vez, em Lisboa, escutei a história de uma senhora portuguesa que guardava a escrivaninha de seu falecido marido, poeta. No tampo do móvel, entre os veios da madeira, ficaram gravadas palavras sobrepostas, vestígio da escrita em madrugadas de poesia. Talvez, o acomodar das coisas, a mera utilidade, seja a menor das funções dos móveis.

    Transformados pelo tempo em memória, espelho dos nossos gestos, os objetos ficam marcados, desfiam, lascam, dobram e ganham vida, atuam serenamente como observadores dos nossos acontecimentos mais íntimos.

    Em “Fio: Gaveta de si, Ofício de ser”, de Francisco Nuk, a utilidade e a serventia dos mobiliários são desmanchadas no momento em que o artista quebra sua rigidez, fazendo do absurdo um conceito perseguido. Tudo em sua obra abre para pistas deturpadas. As cristaleiras distorcidas não mais equilibram os cristais, as gavetas flutuam leves sem o peso dos segredos arquivados, a cômoda circular, cautelosamente esculpida, confunde os guardados.

    Na repetição, no jogo da imaginação e na constância do ofício, Francisco elabora suas esculturas com a intimidade de um poeta. As madeiras, enamoradas, se rendem, dançam e se livram do fardo de servir. Agora são arte. Nada mais.

    Paulo Kassab Jr.

    “No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte”, afirma o filosofo Nuccio Ordine

    Renegando o utilitarismo e influenciado por diferentes correntes, do pós concretismo brasileiro à arte conceitual de Joseph Kusuth, a obra de Nuk remodela aquilo que nos entorna fazendo dos objetos parte de uma experiência artística. O artista arqueia, torce, enverga o objeto, desvencilhando-o da utilidade, assim como a poesia desvirtua palavras em imagens.

    Sem Título

    , 2021

    Sem Título

    , 2021

    Sem Título

    , 2021

    Em seu livro “O Guardador de Águas”, Manoel de Barros poetisa que

    “Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam. Quando a rã de cor palha está para ter — ela espicha os olhinhos para Deus. De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas. Todas estas informações têm soberba desimportância científica — como andar de costas.”

    Francisco Nuk
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk

    Francisco Nuk
    (Belo Horizonte 1990)

    Filho de um artista e uma galerista, Francisco Nuk foi desde a infância introduzido e estimulado a estudar diferentes manifestações artísticas, do Barroco, característico de sua região de origem, ao contemporâneo, expressão produzida pelos pais. Na adolescência teve seus primeiros contatos com a marcenaria fina.

    Passou o começo da fase adulta viajando e fazendo extensos estudos sobre a madeira, instrumentos e técnicas aplicadas. De volta ao Brasil, trabalhou na produção das obras de seu pai e estruturou seu próprio atelier. Durante o período foi incitado à criatividade crítica e estimulado à produção de um trabalho autoral que se manifesta a partir da mescla de suas raízes mineiras e dos questionamentos em torno da função do objeto e sua imperativa utilidade.

    Renegando o utilitarismo e influenciado por diferentes correntes, do pós concretismo brasileiro à arte conceitual de Joseph Kusuth, a obra de Nuk remodela aquilo que nos entorna fazendo dos objetos parte de uma experiência artística. O artista arqueia, torce, enverga o objeto, desvencilhando-o da utilidade, assim como a poesia desvirtua palavras em imagens.

    É nas dobras das atividades consideradas supérfluas que surge a obra de Francisco Nuk. Tal qual o poeta, ele sabe que o abrir mão do desimportante, do inútil, sem utilidade, pode colocar em risco não só a cultura, mas também a imaginação e a própria condição humana.

    Roda da Fortuna

    , 2021

    Gavetas (coluna)

    , 2021

    Sem Título

    , 2021
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk
    Francisco Nuk

    Sem Título

    , 2021
    Francisco Nuk
    Madeira Peroba e palhinha,
    172 x 47 x 47 cm,

      Sem Título

      , 2021
      Francisco Nuk
      Base de madeira peroba e tronco de acácia rosa,
      150 x 40 x 40 cm,

        Sem Título

        , 2021
        Francisco Nuk
        Madeira Peroba, vidro e espelho,
        162 x 60 x 44 cm,

          Sem Título

          , 2021
          Francisco Nuk
          Madeira Peroba e palhinha,
          172 x 47 x 47 cm,

            Roda da Fortuna

            , 2021
            Francisco Nuk
            Madeira Peroba,
            161 x 161 x 30 cm,

              Gavetas (coluna)

              , 2021
              Francisco Nuk
              Madeira Peroba,
              Variáveis,

                Sem Título

                , 2021
                Francisco Nuk
                Madeira Peroba e acrílico,
                160 x 120 x 29 cm,