Ensaio sobre o fim do mundo

    Ensaio sobre o fim do mundo

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    Texto Curatorial : Agnaldo Farias
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    Décimo

    , 2022

    Ensaio sobre o fim do mundo

     

    Esta é a terra morta
    Esta é a terra dos cactos
    Aqui as imagens de pedra
    São criadas, aqui recebem
    A súplica da mão de um homem morto
    Sob o brilho de um astro em desaparição.
    T S Eliot – Os homens ocos (trad. Caetano Galindo)

     

    A indignação é a tônica dessas pinturas de Marina Hachem, daí a opção pelo preto e variações do branco e do cinza, as tonalidades adequadas para a realização de paisagens medonhas, fumegantes e fedorentas como o Pantanal, que desde o ano passado nos vem chegando pelas imagens televisivas, com os cadáveres carbonizados dos animais caídos ao final de uma fuga infinita. Eles não sabiam disso, mas nós, ah nós que armamos a armadilha, sempre soubemos, embora a maioria queira esquecer. Mas não Marina que, divergindo de quem perpetuamente celebra as cores da natureza, produz uma exposição que é um réquiem; um espaço devotado ao silêncio em honra aos mortos, especialmente aqueles que morreram precocemente sem sequer desconfiar disso.

     

    Segundo as pinturas recentes de Marina, nessa que é sua segunda exposição individual, intitulada Ensaio sobre o fim do mundo, a prova da destruição não está apenas lá no Pantanal, na longínqua Floresta Amazônica, no degelo da ainda mais longínqua Groenlândia, ou do Círculo Ártico, onde vem se dando a progressiva desaparição da tundra, entre outros sítios e fenômenos tão distantes quanto intangíveis (aliás, como diriam os Inocentes do Leblon, os alienados alvos da poesia de Drummond, alguém aí foi ao Polo Norte verificar se está mesmo acontecendo um desastre ambiental? todo esse horror divulgado pela imprensa, o decantado desequilíbrio climático não será uma fantasia paranoica da ciência com um rosário de teorias projetadas para incutir pânico nos espíritos delicados? e, afinal, por que a implicância toda para com os plásticos, os pesticidas, os alimentos transgênicos, os sprays responsáveis pelo aumento do buraco na camada de ozônio etc?).

    Vigésima

    , 2020

    Décimo Quinto

    , 2022

    Décimo sétimo

    , 2022

    SEGUNDO

    , 2020
    Marina Hachem

    Sexto

    , 2020

    Nono

    , 2020

    Sétimo

    , 2019

    Pois a prova de tudo isso, como demonstra Marina Hachem, está aqui, colado a nós, moradores das grandes cidades, personificada nos lixões e aterros sanitários, monturos imensamente altos e extensos, estes pontuados pelas chamas permanentes da queima do metano, configurando um imenso fogão com bocas escancaradas ao céu aberto, entre os outros gases liberados pela decomposição do lixo. Aqueles, frutos das sobras das residências, indústrias e hospitais, têm seus resíduos disputados por gente faminta, ao passo em que vão contaminando a água, o ar, o chão e, mais embaixo, vem a força do chorume, o líquido espesso e escuro derivado do apodrecimento da matéria orgânica, envenenando o lençol freático, a água da chuva filtrada na travessia das camadas superficiais do solo, docemente adormecida.

    No Brasil, segundo dados recentes (2020) do Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana, 49,9% dos munícipios brasileiros despeja resíduos em Lixões, enquanto 17,8 milhões de brasileiros sequer tem lixo coletado em suas casas.

    O denominador comum da maior parte dessas pinturas é um tipo particular de Lixão: cemitérios de pneus. A artista foi marcada pelas fotografias de grandes dimensões do canadense Edward Burtynsky, feitas em 1999, em Westley, na California. Há anos Burtynsky vem produzindo imagens sobre a paisagem do mundo industrial, com o mesmo apuro e eloquência com que Ansel Adams, uma de suas fontes essenciais, abordou a natureza dos parques nacionais norte-americanos. No seu levantamento do impacto humano sobre a natureza, os cemitérios de pneus, como concluiu a pesquisa empreendida por Marina, são passagem obrigatória, haja visto a catastrófica queima acontecida em 2021 no maior cemitério de pneus do mundo, no Kwait -entre quarenta e dois e cinquenta milhões (as fontes divergem quanto ao número) espalhados e empilhados ao longo de cinco quilômetros.

    Marina apropria-se e transfere essas imagens para as telas, recortando-as, alterando seus enquadramentos, ampliando alguns de seus detalhes ou ainda reduzindo suas dimensões como verdadeiras infestações, o que a rigor são mesmo, eficazes na condenação do solo à infertilidade e à morte. Transferidas por intermédio de pastel oleoso de cor preta, as imagens provenientes das fotografias foram parcialmente encobertas por camadas de cimento branco e cinza, agregadas na base de telas de arame (dessas de galinheiro), técnica semelhante a utilizada para a produção de concreto armado. As camadas, aparentadas com fluxos torrenciais, cascatas, crateras ou ainda porções submersas, a maneira de pântanos, são confeccionadas por pinceis achatados e duros, por espátulas ou ainda diretamente pelos dedos. O resultado é sempre áspero, crispado, convulso, ainda mais porque, ao menos na parcela de pinturas com a presença de massas de cimento, a tela de arame sobrepõem-se as imagens, contribuindo para uma atmosfera perpassada pela clausura; paisagens encarceradas. São pinturas ou muros? Uma indagação que não se resolve. Vistas de cima, como pela janela de um avião, ou do solo, entre os vales fabricados pelas encostas de pneus, as paisagens não têm profundidade, carecem de horizontes, de distâncias.

    Constituídas exclusivamente por pneus, essas pinturas leva-nos inevitavelmente a pensar na razão da existência deles, na sua condição de um dos principais, mais resistentes resíduos da indústria automobilística, o signo por excelência do século XX e que adentra o nosso século cinicamente envergando uma nova capa de justificativas. Enquanto isso se dá, defende a nossa artista, a jovem Marina Hachem, o homem vai ensaiando com eficiência o fim do seu mundo.

    Agnaldo Farias

    Décima nona

    , 2020

    Primeiro

    , 2020

    Terceiro

    , 2020

    Décimo Primeiro

    , 2022

    Oitavo

    , 2019
    Marina Hachem

    Marina Hachem
    1993, São Paulo, Brasil.

    Formada em Artes Visuais pela Fundação Armando Alvares Penteado, estudou também na Central Saint Martins, em Londres. Sua produção transita entre desenho, pintura, objeto, escultura e instalação.

    Participou de exposições coletivas como Mil e Uma (São Paulo) e Et tu, Art Brute? (Nova York); e teve a individual Entrelinha, em 2016, na galeria ArteHall, São Paulo. Em 2019, desenvolveu o programa de residência da SVA, em Nova York.

    Décimo

    , 2022
    Transfer fotográfico, lápis dermatográfico, cimento, silicone e grade de alumínio sobre tela,
    158 x 121 cm,

      Vigésima

      , 2020
      Ensaio sobre o fim do mundo,
      transfer fotográfico, lápis dermatografico, cimento, argila e grade de alumínio sobre tela,
      40,5 x 50 cm,

        Décimo Quinto

        , 2022
        Ensaio sobre o fim do mundo,
        lapis dermatografico, transfer fotografico, tela de aluminio, cimento, argila em pó e grampos de aço sobre tela,
        128 x 186 cm,

          Décimo sétimo

          , 2022
          Ensaio sobre o fim do mundo,
          lapis dermatografico, transfer fotografico, tela de aluminio, cimento, argila em pó e grampos de aço sobre tela,
          150 x 171 cm,

            SEGUNDO

            , 2020
            Ensaio sobre o fim do mundo,
            impressão, lápis dermatografico silicone, tela de alumínio, argila e cimento sobre tela,
            74 x 119 cm,

              Sexto

              , 2020
              Ensaio sobre o fim do mundo,
              impressão, lápis dermatografico, silicone, tela de alumínio, argila e cimento sobre tela,
              113 x 176 cm,

                Nono

                , 2020
                Ensaio sobre o fim do mundo,
                Transfer fotografico e lapis dermatografico sobre tela,
                81 x 192 cm,

                  Sétimo

                  , 2019
                  Ensaio sobre o fim do mundo,
                  phototransfer, lápis demográfico, silicone e grade de alumínio sobre tela,
                  150 x 170 cm,

                    Décima nona

                    , 2020
                    Ensaio sobre o fim do mundo,
                    transfer fotográfico, lápis dermatografico, imento, argila e grade de alumínio sobre tela,
                    30,5 x 40 cm,

                    Primeiro

                    , 2020
                    Ensaio sobre o fim do mundo,
                    impressão, lápis dermatografico, silicone, tela de alumínio, argila e cimento sobre tela,
                    90 x 120 cm,

                      Terceiro

                      , 2020
                      Ensaio sobre o fim do mundo,
                      impressão, lápis dermatográfico silicone, tela de alumínio, argila e cimento sobre tela,
                      90 x 120 cm,

                        Décimo Primeiro

                        , 2022
                        impressão fotográfica, lápis dermatográfico, cimento, silicone e tela galvanizada sobre tela,
                        140 x 208 cm,

                          Oitavo

                          , 2019
                          Ensaio sobre o fim do mundo,
                          impressão, lápis dermatografico, silicone, tela de alumínio, argila e cimento sobre tela,
                          158 x 189 cm,