Da Memória Vegetal

    Da Memória Vegetal

    Viewing Room
    Texto Curatorial : Pollyana Quintella
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    série Bibliomorfas l Livro do Ano

    , 2022

    Forjar um livro vivo

    do papel a madeira se lembra
    do vinco farpa casca
    das tempestades de verão
    cadeias de árvores
    do tronco que se enverga no alto
    com o peso acumulado dos pássaros
    um livro, papel sobre papel
    Ana Estaregui

     

    Forjar um livro vivo – plataforma aqui disputada pelas formas orgânicas, cuja cognição se dá no terreno dos ciclos vitais. Fundar um livro destituído de enunciados, na busca por um objeto em metamorfose, criatura a um só tempo de realidade vegetal e emergida da especulação ficcional. Profanar o livro: manipulá-lo, cortá-lo, colá-lo, queimá-lo, pintá-lo; não para destruí-lo, mas para ir além e aquém de seu projeto iluminista, não encerrar no cânone da palavra as possibilidades políticas da linguagem.

    No corredor da Galeria Lume, há uma série de livros seccionados, unidos um a um. Impossível acessar seu conteúdo. Não sabemos da onde vieram, o que dizem, que programa instituem – na realidade, nada disso importa. Aqui, eles se apresentam enquanto lâminas de prateleiras amolecidas, flácidas. Alguns, moldados pelo seu próprio peso e gravidade, pendem como línguas, subvertendo os pressupostos de permanência e solidez. Eles evocam suscetibilidade e mutabilidade, além da sugestão direta à processos orgânicos, de qualidades corporais. Trata-se de uma série que parece ser o desdobramento de obras precedentes do artista, sobretudo as instalações com livros fatiados e colados, dispostos antes diretamente no chão. Desta vez, no entanto, falamos de uma radicalização daquele procedimento, pois agora são restos de livros que desmoronam, se derramam charmosamente diante de nós, clamando por outros usos entre nuances de branco e amarelo; páginas antigas e novas. Outros, feitos a partir de cortes menores, constituem formas circulares como roldanas híbridas e irregulares. A rigidez da estante e da biblioteca dá lugar à sinuosidade de um livro-corpo que deseja rememorar sua origem vegetal, se engajar com uma memória longínqua, primeva. Essas Bibliomorfas se espraiam pela parede como organismos que traçam e negociam rotas que sejam capazes de abrigar seu crescimento.

    Talvez fosse possível imaginá-las tomando pouco a pouco toda a galeria como uma grande partitura que reivindica para si esta arquitetura na mesma medida em que abandona palavras pela metade – afinal, o balbucio de seu significado é outro, apenas entrevisto, jamais plenamente enunciado.

    Biblioteca – São Jorge 2

    , 2022

    Biblioteca – São Jorge 02

    , 2022

    Biblioteca por vir l Espada de São Jorge

    , 2022

    Biblioteca por Vir l Costela de Adão P

    , 2022

    Biblioteca por vir – Pholodendrun

    , 2022

    Já na sala expositiva, as prateleiras seccionadas voltam a ocupar as paredes com as obras da série Biblioteca por Vir, já previamente conhecida na trajetória do artista. Trata-se de uma obra cuja ambiguidade é central: água, fogo e mineral compõem os elementos que ali vemos, embora cada um cumpra um diferente papel. O resíduo chamuscado da pólvora sobre a superfície denota uma interferência entre o controle e o descontrole, entre a agressão e o cuidado. É como se Dupin produzisse pequenas cicatrizes sobre esses livros, nos convidando a imaginar o percurso de seus gestos e a biografia desses objetos. Além disso, há virtuosas aquarelas com motivos botânicos, nos fazendo lembrar da prática dos artistas viajantes e das expedições científicas que ajudaram a construir o imaginário tropical e seus clichês. Por fim, detalhes de douração, além de forte apelo estético, demarcam o livro como objeto distinto e precioso, item de domínio das elites culturais ao longo de sua história.

    São peças que nos induzem a estímulos necessariamente contraditórios (são belas e destrutivas, fascinantes e imorais) e resistem a qualquer sentido unívoco. Daí, as ambivalências são muitas: ideias historicamente associadas ao livro como a perenidade (espécie de invulnerabilidade histórica) e a credibilidade (como repositório da verdade e do conhecimento) são contestadas por um título que nos sugere que a tal Biblioteca por Vir é, na realidade, uma espécie de retomada vegetal que se alastra por essas superfícies. Ao contrário do rigor e da catalogação científicas, esses caules e folhas insurgem sobre os livros como organismos ingovernáveis, pondo em cheque este dispositivo centrado no império da razão. Em seu lugar, vislumbramos novas alianças entre espécies e mundos habitados por seres porosos, híbridos e múltiplos que reafirmam um senso de parentesco entre o orgânico e o inorgânico, o animado e o inanimado, no anseio de fundar outros horizontes e rearranjar relações entre viventes e extra-viventes. O por vir é, afinal, uma grande floresta. Se todo livro já foi, ao seu modo, árvore, o por vir é portanto um retorno, o que torna passado e futuro categorias indissociáveis; um só processo de prospecção e de retrospecção, de rememoração e de devir simultâneos.

    Pierre Bourdieu disse certa vez que “um livro muda pelo fato de que ele não muda quando o mundo muda”. Talvez Lucas Dupin discorde dele. O que há aqui, em todo conjunto de trabalhos, é a reivindicação de um livro eminentemente vulnerável, capaz de absorver as transformações não só do seu entorno, mas de seu tempo. Um livro na busca do reconhecimento de um estranho, um Outro, no seio de si mesmo.

    Pollyana Quintella

    Biblioteca por vir l Costela de Adão

    Biblioteca por vir l Jade

    , 2022

    Bibliomorfas #1

    , 2022

    Bibliomorfas #2

    , 2022

    Bibliomorfas #3

    , 2022

    Instalação Bibliomorfas

    , 2022
    Lucas Dupin
    Lucas Dupin
    Belo Horizonte, 1985. Vive e trabalha em Belo Horizonte, Brasil.

    Mestre (2012) e Bacharel (2008) em Artes Visuais pela UFMG, Lucas Dupin já participou de exposições e residências artísticas no Brasil e no exterior.

    Sua pesquisa artística transita por diferentes linguagens como por exemplo, fotografia, desenho, instalação e vídeo, sempre a partir de um intenso diálogo com o contexto nos quais os trabalhos estão situados. Tem interesse especial pelo universo do livro, da palavra escrita e na forma como a passagem do tempo se inscreve nas coisas.

    Dupin recebeu diversos prêmios, como, em 2015, o Prêmio de Arte Contemporânea da FUNARTE, 6o Bolsa Pampulha, Prêmio de Residências Artisticas da FUNDAJ e, em anos anteriores, destacam-se o Concurso Olheiro da Arte, o Prêmio Interações Florestais em Terra UNA e o 2o Prêmio Energias na Arte no Instituto Tomie Ohtake – SP, no qual recebeu a primeira colocação

    série Bibliomorfas l Livro do Ano

    , 2022
    Lucas Dupin
    tecido e enciclopédias cortadas,
    130 x 115 x 20 cm,

      Biblioteca – São Jorge 2

      , 2022
      Lucas Dupin
      Aquarela, pólvora e douração sobre livros cortados / watercolor paint, pouder and gold on sliced books,
      70 x 50 cm,

        Biblioteca – São Jorge 02

        , 2022
        Lucas Dupin
        Aquarela, pólvora e douração sobre livros cortados / watercolor paint, pouder and gold on sliced books,
        70 x 50 x 5 cm,

          Biblioteca por vir l Espada de São Jorge

          , 2022
          Lucas Dupin
          Aquarela, pólvora e douração sobre livros cortados / watercolor paint, pouder and gold on sliced books,
          70 x 50 x 5 cm,

            Biblioteca por Vir l Costela de Adão P

            , 2022
            Lucas Dupin
            Aquarela, pólvora e douração sobre livros cortados / watercolor paint, pouder and gold on sliced books,
            70 x 90 x 5 cm,

              Biblioteca por vir – Pholodendrun

              , 2022
              Lucas Dupin
              Aquarela, pólvora e douração sob livros cortados l Watercolor, gunpowder and gilding under cut books,
              106 x 90 x 5 cm,

              Biblioteca por vir l Costela de Adão


              Lucas Dupin
              técnica mista sobre livros cortados / mixed media on cutted books,
              107 x 185 x 5 cm,

                Biblioteca por vir l Jade

                , 2022
                Lucas Dupin
                Aquarela, pólvora e douração sobre livros cortados / watercolor paint, pouder and gold on sliced books,
                67 x 260 x 5 cm,

                  Bibliomorfas #1

                  , 2022
                  Lucas Dupin
                  livros cortados e látex l cut books and latex,
                  80 x 27 x 5 cm,

                    Bibliomorfas #2

                    , 2022
                    Lucas Dupin
                    livros cortados e látex l cut books and latex,
                    67 x 47 x 5 cm,

                      Bibliomorfas #3

                      , 2022
                      Lucas Dupin
                      livros cortados e látex l cut books and latex,
                      102 x 52 x 5 cm,

                        Instalação Bibliomorfas

                        , 2022
                        Lucas Dupin
                        livros cortados e látex l cut books and latex,
                        140 x 1000 cm,