“O único território que existe é o que você ocupa.”

Com essa pista, Mame-Diarra Niang nos abre o seu universo. A artista percorre um mundo utópico, sem fronteiras delimitadas, onde nacionalidades e bandeiras são irrelevantes e onde as pessoas têm trânsito livre. Ao se aproximar desse lugar, a artista reconhece os seus espaços e circunscreve suas próprias balizas. A câmera é o seu instrumento cartográfico, seus sentimentos são sua bússola e a cada clique suas divisas são demarcadas.

Através de seus enquadramentos, Niang projeta sua individualidade e cria seus sítios. Essa característica modular do espaço, que a própria artista conceitualiza como a “plasticidade do território” também pode ser compreendida como uma afirmação de sua identidade em constante processo de metamorfose.

A artista nos leva em seu percurso um tanto íntimo, um tanto sensorial, como um espelho que olha pra dentro e que reflete ambientes arranjados em duas séries: The Citadel: a trilogy (Sahel Gris, At The Wall e Metropolis) e Call me when you get there.

Na trilogia (que encontra-se na sala principal da galeria), a artista percorreu três regiões familiares a ela, em situações distintas de sua vida. Ao expor os conceitos de cada serie, ela se deparou com a sua fortaleza que, por ter sido definida por ela mesma, é o local onde se sente segura. A partir de uma área em construção ou em destruição, nasce Sahel Gris. Enquanto perambulava por essa zona não identificável, a artista traçou a sua linha de horizonte e registrou o seu árido entorno. Mesmo aparentemente abandonado ou inóspito, trata-se do lugar ocupado por Niang. É lá que ela se encontra naquele momento e onde ela, por fim, se depara com o seu limite.

At the wall delimita os passos de Niang. Ela encara todos os muros, através de diferentes ângulos, e, sem se paralisar, constrói seus confins. Suas imagens nos dão a sensação de que ela riscou a sua barreira estando em constante movimento, gerando enquadramentos irregulares. O que se fez necessário foi proteger-se em sua fortaleza.

Com seu espaço circunscrito, adentramos em Metropolis, última parte da trilogia que compõe a cidadela de Mame-Diarra Niang. Nos encontramos em um denso centro urbano de cores saturadas e em meio a enormes estruturas aparentemente impenetráveis, mas onde percebemos janelas abertas, transeuntes, reflexos e traços de vida. É aqui que Niang eleva o visor de sua câmera e mira o lugar mais alto de seu território, como se agora pudesse, enfim, ver mais nítido. Nesse caminho guiado pela narrativa da artista, é possível perceber seus silêncios, suas sensações, sua respiração presa, seus encontros e desencontros e, sobretudo, sua necessidade de auto-representação.

É essa mesma motivação de externalizar seus sentimentos através de paisagens que levou a arista a criar a série Call me when you get there. No último ano, devido à pandemia do Covid-19, a França, país que a artista vive, impôs rigorosas medidas de distanciamento social exigindo longos períodos de confinamentos. Diante da privação de deslocamento, Niang encontrou no Google Maps uma forma de continuar sua prática artística. Ela buscou imagens de lugares que lhe eram familiares e que refletissem seu estado de espírito. O resultado dessa viagem interior se traduz por capturas de telas de locais onde as pessoas parecem estar se desvanecendo. Com corpos incompletos ou com apenas traços e sombras de suas presenças, os habitantes dessa localidade específica tiveram seus registros distintos de outros roteiros explorados pela artista. E foi exatamente nesse território que Niang se deparou com a tradução de como se sentia.

Quando deslocadas dos fins para os quais foram geradas, as cenas ganham novos significados e são capazes de originar identificações por parte do espectador. Essa investigação da artista se transformou em uma série que se aproxima de auto-retratos de suas vivências durante os confinamentos. As suas emoções se refletem igualmente pelas escolhas de apresentação de seu trabalho: imagens quadradas, impressas em pequenos formatos, com bordas brancas que delimitam seus espaços e emolduradas em caixas transparentes. A obra reflete, assim, um sentimento comum aos que vivenciaram as situações de clausura, em uma involuntária imersão em suas intimidades, dentro de superfícies extremamente limitadas. A partir da circulação do seu próprio corpo nos espaços que adentra ou nas deambulações de sua mente num imaginário próprio de mundo, Mame-Diarra Niang produz, de algum modo, seus auto-retratos-territoriais.

Mame-Diarra Niang nasceu em Lyon e foi criada entre a Costa do Marfim, Senegal e a França. Ela participou da 33ª Bienal de São Paulo (2018), da 11ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre, (2018) e das 11ª e 12ª edições da Bienal de Dakar (2014 e 2016).

– Marcella Marer