Clausura

Uma das reflexões mais nítidas que tive durante esse marcante ano é que a Pandemia e o Isolamento não são o mesmo fenômeno. A pandemia é um evento de natureza coletiva, que afeta a saúde pública, a ciência, e a politica. O isolamento é um acontecimento de natureza psicológica, com impacto na saúde mental, na auto estima e na nossa conexão com nós mesmos e nossos valores, é uma pausa, uma oportunidade, e um momento de revelação. Claudio Edinger entendeu isso e decidiu se aventurar numa iniciativa de capturar o espírito da clausura de cada um num raro momento de sincronicidade de situações. O resultado é lírico.

O retrato como testemunha distante de um isolamento compulsório. Uma espécie de miragem nítida de alguém em um contexto difuso, um ponto de vista alheio meio impossível. Uma foto que não se viu, mas que se captou. A busca pelo menor denominador comum do que cada pessoa levou para sua ilha de isolamento. A condição mínima de permanência que revele a personalidade de cada retratado, seu violão, sua nudez, sua banheira, seu lugar. A condição da reclusão nos humaniza, nos mostra vulneráveis e reais.

O acontecimento da pandemia de 2020 é um dos fatos mais importantes da nossa história, porém um evento que produziu poucas imagens. Por respeito às vitimas, e aos contextos de isolamento, a dor se materializou na forma de números e gráficos. Mas a memória de toda uma geração será marcada pelos que aconteceu no seu espaço intimo. Por isso esse projeto é realmente singular, ele revela algo sobre um vazio comum à todos.

Ser capaz de fotografar o vazio de cada um, me parece um engajamento ambicioso. A fotografia sempre valoriza capturar o momento da ação em sua plenitude. Edinger, buscou retratar o contrário, a não-ação, o tédio, a espera, a contemplação infinita do tempo respeitando cada entorno como o contexto que os protege e identifica.

Claudio Edinger é um fotógrafo escolado nas múltiplas possibilidades das linguagens fotográficas, mas ele foi absolutamente feliz em desenvolver uma solução técnica que traduzisse o nosso zeitgeist. Ao ser retratado por ele entendi a mudança da geometria da relação fotografo, retratado e o drone. O Drone atua como uma entidade própria, inoculando a realidade com uma intervenção robótica que se posiciona entre os humanos que ali atuam a seu serviço. O sistema definiu o ponto de vista, o distanciamento é um imperativo. O Drone delimita isso. A foto é o retrato de uma situação, não necessariamente de uma pessoa. É nessa hora que o contexto se revela e fala algo sobre o tempo que estamos.

Existe algo de artificial nas fotografias, todas parecem encenadas, mas aí reside a maior verdade do projeto, a situação que vivemos é artificial, gera um certo estranhamento de nós mesmos com nossa intimidade. Tivemos que inventar um novo espaço íntimo, injetar uma dose de sonho na vida que se mostrava repetitiva, desenvolver talentos abandonados, nos conectar com os outros de novas formas. A vida da quarentena não nos pareceu real e a nova normalidade nunca se naturalizou. Isso fica explicito na saturação de cores mais fortes do que a vida e na composição apurada de cada foto. Com os anos aprendi que as maiores verdades são contadas nas mentiras.

Marcello Dantas