PSICODEMIA

Conhecimento sensível: é esta uma das possíveis definições de estética. Uma espécie de pensamento direto, ou ainda um tipo de ideia que nasce em conexão com os estímulos sensoriais e com o mundo concreto. Uma forma de compreender nossas experiências e vivências, mas através de cores, formas, texturas, sons, movimentos e suas inúmeras inter-relações e composições. Algo que talvez participe, como um chão, das definições, qualificações, categorias e argumentos do pensamento abstrato e da comunicação verbal. Como quando estamos diante de um problema ou decisão importante e precisamos caminhar, ver um pôr-de-sol, ouvir ou tocar uma música, rabiscar um desenho.

Ou ainda quando estamos diante de algo profundamente desconcertante, como uma pandemia. Foi assim, através das sensações, das imagens e suas evocações, que Antoine d’Agata se propôs a refletir sobre o que até agora não conseguimos abarcar completamente, nesses mais de dois anos da crise sanitária mundial. Reflexão, ruminação, visitação, contato, recorrência, mergulho, testemunho, face a face – são termos que de certa forma se opõem a representação. Antoine não procurou representar a pandemia, não fez dela um assunto, nem quis ilustrar ou retratar a dor e o horror que vivíamos, porque isso já seria uma coisa segunda, já pressuporia um saber anterior. E não sabíamos. Em vez disso se colocou em contato direto e diário com o que ocorria à sua volta e consigo mesmo, seja nas ruas que se esvaziavam ou dentro dos hospitais, seja na França ou em outros países por onde passou, incluindo o Brasil, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Imagens-testemunho, que recorrem, com a força de um diário de sobrevivente, que nos devolvem, na forma desse conhecimento sensível, algo que todos vivemos mas ainda não nomeamos. E que temos a chance, através dessas mesmas imagens que se misturam à nossa memória, de encarar, de inquirir, de fazer evocar o que quer que seja em nós. De revisitar, sem dúvida, mas com o útil distanciamento que uma obra oferece a quem dela se aproxima.

Resta falar da natureza dessas imagens, fruto do procedimento que Antoine elegeu e sustentou ao longo do percurso, a termografia. Com exceção de algumas imagens convencionais feitas no primeiro momento da crise, foi com um sensor térmico acoplado ao celular que todo o trabalho foi feito. Antoine costuma ressaltar que para a termografia não importa a luz, mas as fontes de calor, como um corpo, como a vida de um ser. Por isso as silhuetas, porque não é a luz na superfície das coisas e portanto sua aparência externa que essa técnica capta, mas a forma do calor que geram – manchas luminosas de cores quentes, como o laranja, o vermelho e o amarelo. Ou a forma da sua ausência nas cores mais frias, como o azul, o violeta e, no extremo, a sombra, a cor nenhuma. Não é preciso dizer o quanto isso pode ser eloquente quando a vida de um corpo cessa.

É também pelo procedimento da termografia e da maneira particular como o fotógrafo soube utilizá-lo que as imagens dessa série são muitas vezes comparadas à pintura. Ainda mais ao se saber que ela é parte reconhecida do repertório de Antoine, algo que um de seus mais recentes livros, por exemplo, uma seleção de fotografias suas ao lado de obras de Francis Bacon, demonstra muito bem. Mas é importante ressaltar aqui o caráter indicial – uma das especificidades da fotografia –, qualidade que a termografia também compartilha: algo de fato esteve diante da câmera, uma parte do mundo concreto impressionou o sensor. São pessoas, portanto, são pacientes, as equipes médicas e de enfermagem, seus gestos de cuidado, são indivíduos em situação de rua, são passantes amedrontados – é vida, ou a luta por ela. Pessoas cuja identidade a natureza silhuetada dessa técnica ajuda a preservar, na mesma medida em que nos mostra sua vitalidade, igual em calor à de todos nós.

Por fim, diante da obra e do que ela testemunha, diante da possibilidade de um conhecimento sensível que é fruto de tudo o que vivemos como pessoas e como coletividade, o que mudou e o que é urgente mudar? Será mal maior o vírus, ou uma psicodemia?

Fábio Furtado