Como uma sombra de si mesmo

“O rei se curva ante a dor que o Brasil todo sentiu”, com esse veredito publicado no Jornal do Brasil, uma fotografia de Alberto Ferreira grudou na linha do tempo e ganhou o Prêmio Esso, em 1963. O registro feito no exato momento da contusão de Pelé na Copa do Mundo do Chile, em 1962, correu o mundo e tornou-se um ícone na história do fotojornalismo brasileiro. A imagem cruzou a vida e a morte do artista. Mas uma foto não basta para um fotógrafo “seguir adiante”. Ferreira viveu, sim, no universo da fotografia documental e teve a marca daquele tempo, entre os anos de 1950/1970, ao lado esquerdo do seu olhar. Recortou cada segundo dos lugares por onde passou no Brasil profundo para tornar a fotografia cada uma delas uma imagem definitiva, invadida pela poética do instante completo, algo que apenas os perseverantes serão capazes de encontrar.

Brasília despida dos olhos dos outros quando o país ouvia a si mesmo nas ondas do rádio. A vida cotidiana amparada pela elegância que rapidamente, e não aos poucos, estamos perdendo com nosso corpo cerzido por uma fatura chinesa. O fotógrafo não vê apenas o que pensa. Faz de uma troca de pneus uma cena/imagem bem-humorada sem ser piegas. Livrou-se da era stand up comedy. Encontrava a luz como quem nada procura. Nunca fez da luminosidade um “cenário” para completar sua fotografia. Fez o contrário. Protegeu cada um dos seus personagens: deixou o desejo ardente do sol banhar mãe e filho às margens de um rio, entre passagens.

Muitas das imagens desse paraibano de vida carioca ultrapassam e umedecem a estética do que ainda costumamos chamar de fotografia documental. Uma fotografia existe porque guarda um segredo dentro do outro. Apenas o olhar estático diante de uma imagem será o “início” que, no dia seguinte, já dirá outra coisa: um interminável desejo em revelar o que o nosso mundo privado (o olhar) busca decifrar, ver o que o outro enxergou. Nesse jogo de espelhos nunca abstrato, no tempo compacto, o fotógrafo lê a cidade como a página de um livro aberto: o entregador de leite avança em direção ao beco iluminado congelando o tempo; o homem de branco lava a memória perdida no meio da rua/o desmanche do Morro do Castelo; a sambista exibe o seu corpo/alegria quando ainda nosso corpo/passista/madrinha de bateria não seria apenas bombas siliconadas como material de consumo num corpo ancestral. Do lado de cá, no tempo presente, fica a suave impressão de que Alberto Ferreira seguiu o fio da palavra naquele verso onde seu conterrâneo, Augusto dos Anjos, lembra a grandeza da existência: “Para que enfim chegando à última calma/meu podre coração roto não role/integralmente desfibrado e mole/como um saco vazio dentro da alma”.

Diógenes Moura
Escritor | Curador de Fotografia