Uma história do vento*
Em 1989, em seu último documentário, o cineasta Joris Ivens busca capturar o ar em movimento no deserto.
Cobiçado, o vento é raro, misterioso. Torna-se metafísico. Carrega a memória dos sons, das canções, de vida e morte, de escravidão e liberdade. O filme impõe duas faces ao vento: límpido, propício aos sonhos e que renova o som e o movimento regular das asas, mas também ausente – indefinido, desordenado e necessariamente perturbador: a falta de ar, de movimento e, consequentemente, da palavra.
Se o documentarista precisa ser perceptivo, se sua visão deve cruzar a superfície brilhante das aparências, seu trabalho não é registrar mecanicamente a realidade, mas extrair dela um significado relacionado as suas próprias vivências. Neste contexto, “Uma história do vento” é um auto-retrato do artista que volta ao passado para recolher momentos dispersos da existência, da qual surge então “este fio vermelho entrelaçado com a trama dos dias”.
Natural de Icoaraci, no Pará, Osvaldo Gaia teve seu olhar treinado pela plasticidade das raízes, velas, anzóis, casulos, canoas e igarapés. Desta observância se entrelaçam memória e poesia, um resgate dos saberes ribeirinhos que sua mão revela em leves tramas poéticas. Tudo é ar, equilíbrio, brandura. Engenharias que se articulam no espaço em um complexo jogo de madeiras, roldanas e linhas que conduzem o olhar ao eterno prazer de ver as coisas mundanas em uma perfeição plástica penetrante.
O vento de Gaia é uma entidade imprevisível que ele usa de espelho a sua própria história, é nele que se encontram os personagens de um universo distante, pré-industrial, anterior ao sentido do progresso. É uma face do mundo que agora se transfigura em poesia, no universo tranquilizador e contínuo da infância, onde cada obra é uma imagem sensível do tempo, desde a representação do nascimento em misteriosos casulos, ao equilíbrio minucioso
das velas e anzóis.
Entre presença e ausência, “Vamos chamar o vento” conta a história de uma vida regida pelo ritmo dos rios e o equilíbrio da natureza através da transfiguração de objetos cotidianos em objetos de arte. Há na exposição uma identificação mística entre o princípio e o fim, como se o nascimento, a memória, a existência e a morte pudessem se fundir numa única coisa.
Tal qual o Joris Ivens, as “máquinas escultóricas” de Gaia estendem os movimentos e desejos de um mundo particular e fazem do invisível palpável. Aos olhos dos artistas a arte é, antes de tudo, um instrumento de sopro.