Linha de Passe
Salvo o que creem alguns poucos lunáticos, está comprovado que o mundo gira em torno de uma bola que roda. No entanto, a cada quatro anos um fenômeno planetário hipnotiza bilhões de terrestres que fixam os olhos nos gramados e campos da terra à espera de um momento fascinante e imprevisível, sempre protagonizado por um outro globo, a pelota que desliza sorrateira entre as pernas de um zagueiro, se ajoelha, reverencia e coroa o rei negro que faz de bobo um gigante sueco, vinga a antiga batalha pelos pés de um deus canhoto que finta uma multidão de nobres, seis no campo e milhares fora deles, para estufar as redes e o peito dos que apreciam a arte do jogo. No centro das atenções, heroína ou vilã em todas as encenações deste palco retangular de grama verde, a bola. Certa vez um jornalista perguntou à teóloga alemã Dorothee Sölle como ela explicaria a um menino o que é a felicidade. Ao que ela respondeu: não explicaria. Daria uma bola para que jogasse.
Muito antes de industrializarem a pelada, tomarem de assalto a espontaneidade em prol do resultado, fazerem dos clubes empresas e da grande empresa que os controla máfia, já existia a bola que, mesmo quando feita de pano, estopa, meia ou papel, girava e transformava àqueles que dançam com ela, a acariciam e embalam no peito dos pés, em ídolos. Para muitos meninos no Brasil, em geral pobres e negros, é uma das raras possibilidades de ascensão social. A bola é a única varinha mágica em que podem acreditar. Talvez ela lhes dê o que comer, talvez os transforme em heróis, talvez em deuses. 1
Olho no lance. Aqui não se enxerga mais o ufanismo pedante dos uniformes, os anúncios ambulantes, tampouco as cifras milionárias dos que transformaram paixão em negócio. Silêncio. O tempo se detém e a gravidade deixa de existir para ver o menino flutuar: olhos para o céu, corpo paralelo ao campo, braço levemente inclinado e a perna direita esticada. O fotógrafo eterniza o imensurável. Aqueles corpos permanecem ali até hoje, inertes, mudos, no mesmo lugar, à espera de um desvio na bola que, por preciosismo, não entrou.
A cada dia parece mais difícil assistir a uma nova jogada magistral, assim vamos aos estádios implorar por um milagre que mesmo quando surge do lado adversário, comemoramos silentes para não chamar a atenção dos mais jovens, torcedores incipientes. O jogo ficou chato, metódico, o que ja foi mandinga virou dever. Enquanto lugar de poesia, exaltação e delírio, o futebol é espaço da imaginação e da engenhosidade. O artista domina o tema, apaixonado passa por cima das maçantes regras “padrão Fifa”. Muda os contornos do campo, desloca os jogadores, sugere novos tempos em distintos espaços à espera de, quem sabe, novos arranjos, insólitas composições, outras configurações de mundo.
A exposição “Todos os jogos, o jogo”2 é uma homenagem ao futebol. Não à copa do mundo ou as organizações que se pretendem donas do jogo, mas ao gesto simples e primoroso, ao craque de pés descalços, ao improviso, à quadra riscada em giz no asfalto das ruas ou delimitada com chinelos em terrenos baldios e aos batentes das portas, primeiras traves, que levam consigo o brado desesperado dos pais a disputar com o êxtase, o grito insuperável do gol.
Paulo Kassab Jr.
1.Galeano, Eduardo – Futebol ao sol e à sombra, pág 51. L&PM fevereiro 2019;
2.Farias, Agnaldo – Futebol no campo ampliado, Eduardo Coimbra, pág 17. RJ, Tisara 2014