Toda vez que um texto é lido, são adicionadas a ele camadas de significado. Em cada época que um texto é revisto, ele ganha nuances de tempo que o julgam ainda se relevante no presente ou se parte de um passado ao qual não se deseja voltar mais. Assim sendo, por mais que um livro seja uma tentativa de apreender o pensamento de um ou mais autores, em um conjunto de ideias organizadas em capítulos ou tópicos, a escrita, e seus sentidos são fugidios.
Em Disseminação (“La dissémination”, 1972), Derrida trabalha com a ideia de que a escrita não fixa sentido, mas sim o dispersa, dissipa, deixa rastros que nunca são definitivos. Ele brinca com a ideia de que um texto “escapa” do controle de seu autor, e que os sentidos se multiplicam com o tempo — como também se apagam, se perdem e se transformam.
Se ampliamos essa perspectiva, mais do que um arquivo do conhecimento humano, uma biblioteca seria então uma estrutura em constante movimento. As aproximações entre os volumes e a organização dos livros criam relações, significados e hierarquias. As presenças e ausências delimitam aquilo a que chamamos de conhecimento.
Nessa movimentação, a cada vez que um livro é escolhido, se abre uma janela infinita de sinapses, lembranças e conexões com os sentidos ali circunscritos em forma de texto. E cada escolha representa um universo de motivações e possibilidades.
Artista estudioso, voltado ao método desenvolvido com a prática diária incansável do ateliê, Lucas Dupin é cercado por livros, plantas, símbolos, luz, céu e gente na sua oficina de trabalho, em um luminoso terraço de um edifício residencial em Belo Horizonte. Cito os elementos que compõem seu ateliê por percebê-los em sua obra, já que todos os trabalhos presentes na exposição, de alguma maneira, respondem às medidas da casa: a estante de livros, as grades da janela, as plantas comuns às casas de tanta gente. Um olhar que reconhece no cotidiano formatos outros de livros que estão aí pelo mundo e um gesto que decodifica uma sofisticada elaboração mental em manualidade e artesania igualmente sofisticadas e minuciosas.
Os livros que chegam ao ateliê são oriundos em sua grande maioria de doações de bibliotecas. Livros que de alguma maneira se tornaram obsoletos, como enciclopédias, almanaques médicos e jurídicos, teorias econômicas, gramáticas e dicionários: pilares do conhecimento ocidental, que, embora sejam revistos, mantém uma estrutura de arquivo e validação de saberes.
Quando Lucas manuseia e fragmenta esses livros, gera cortes e reconexões. O artista é aqui também um editor de uma biblioteca de uma história sem início ou fim, onde o caminhar entre couro, bronze, papel, douramentos, pólvora e tinta se torna um infinito mimetizado.
À sua maneira, as coisas – livros, conhecimentos e saberes, se reordenam no trabalho de Lucas Dupin. Ao editar e relacionar outros paradigmas de conhecimento, Lucas constrói bibliotecas de possibilidades. Se a palavra soma é o substantivo principal da frase que dá título e organiza o princípio fundamental desta exposição, há algo que também corta, atravessa e desestabiliza certezas, estruturas e reordena aquilo que se abre e renova infinitamente.
Ciente disso, o artista faz de seu ofício veículo de outros saberes. A delicada técnica de douramento ou a igualmente delicada e imprevisível aquarela, são depositadas como camadas de um tempo presente que reorienta amálgamas de conhecimento, deixando transparecer outros saberes. A espada de São Jorge, guardiã e solene, ao passo que popular, chega no trabalho de Lucas Dupin da mesma forma que a escultura em bronze: a presença da tradição.
Comuns nos gradis de casas de bairros residenciais da classe trabalhadora o formato que se assemelha um coração carrega em sua sinuosidade conceitos que fazem parte de um conjunto de signos oriundos da cultura Akan denominado Adinkras. As Adinkras são ideogramas que expressam valores tradicionais, ideias filosóficas, códigos de conduta e normas sociais. Valores civilizatórios oriundos da Costa do Marfim que criaram raízes em outros territórios e que se mesclaram, de um jeito ou de outro, moldando em imagem e presença o cotidiano.
Se o bronze nos remete à história da arte ocidental, com seus monumentos e heróis, a espada de São Jorge e o símbolo presente nos gradis são a beleza e sofisticação daquilo dito como popular, mas que carrega em si a erudição de seculares e invisíveis bibliotecas. Bibliotecas que estão em todos os lugares e que se abrem como mutáveis, maleáveis e de infinitas possibilidades.
Lorraine Mendes