Ventário
Anna Costa e Silva

 

Quem nunca desejou fugir do confinamento da própria vida?
Uma existência única sempre será uma espécie de prisão,
uma mutilação das outras realidades possíveis dos outros indivíduos que poderíamos ser. Quem nunca desejou ser outro?

– Rosa Montero (O perigo de estar lúcida)

 

O som da burocracia se expande no espaço. Um barulho de engrenagem orquestrado por telefones tocando, folhas que passam entre os dedos para serem grampeadas, certificadas e registradas na urgência do tempo presente. A luz branca e asséptica que ocupa grande parte dos órgãos públicos espalhados pelo Brasil uniformiza ações e padroniza vidas que habitam tais repartições. Robotizam o exercício humano. Não conseguem, no entanto, pasteurizar o pensamento. Este segue solto, sendo quem deseja, sonhado, imaginado… ou melhor: ventário – algo da ordem das coisas que ventam. Dos devaneios que acontecem no cotidiano e que envolvem mais de uma pessoa. A palavra faz parte de um pequeno dicionário inventado, uma cocriação entre funcionários públicos da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e a artista multidisciplinar Anna Costa e Silva.

Ventário dá nome a esta exposição, mas é também a alcunha de um filme-devaneio e de uma instalação que sintetizam o processo de 12 meses vivido por Costa e Silva na Residência Artística Setor Público [RASP], que prevê a imersão de artistas em órgãos públicos brasileiros, para construir processos e/ou objetos em colaboração com os funcionários desses órgãos. Nesse processo, a artista abriu um potente canal de escuta para que servidoras e servidores pudessem falar sobre suas histórias, pensamentos, dores e sonhos – muitos sonhos. Juntos, desenvolveram um singular repertório de cores, texturas, imagens e palavras reais e inventadas para que cada participante experiencie em sua própria pele, num instigante jogo de auto-ficção. Dessa forma, iniciou-se a criação de personagens fantásticos que materializam tais desejos e suas respectivas solidades – sensação da própria liberdade, algo completamente individual e que outras pessoas não podem acessar. Mas que aqui, nesta sala (e porque nos permitem), podemos sentir e reconhecer.

O projeto sintetiza uma das mais interessantes habilidades de Costa e Silva: a arte de reformular tecidos sociais e afetivos, tendo o encontro como principal matéria-prima. Produz imersa em um processo de artevida, em contínuos encadeamentos de escuta e transfiguração de palavras e imagens. Observadora nata, ela traduz o ambiente que a rodeia com generosidade e precisão, utilizando-se de uma gama de gêneros artísticos e técnicas para melhor materializar formas distintas de existência do ser humano, tratando com delicadeza as fragilidades essenciais da vida. Seus projetos acontecem em algum campo sem nome, nas interseções entre artes visuais e cênicas, cinema e práticas relacionais – e Ventário é um esplendoroso exemplo disso.

A partir de tais relatos e na tentativa de sustentar os encantamentos desabrochados, Costa e Silva convidou o stylist José Camarano para criar figurinos em colaboração com os participantes. Assim, as imagens descritas ganharam formas, cortes, pesos e movimentos. Os servidores puderam, então, sentar em suas mesas vestindo uma história, um desejo; ganharam maquiagens a partir de suas palavras ou objetos que destoavam do ambiente formal do dia a dia. Dessa maneira, tiveram uma nova experiência com seus corpos naquele espaço de trabalho tão conhecido e agora inédito nessa nova versão de seus seres, nesse outro que nos habita e que eventualmente logramos libertar. Cada participante desenvolveu também uma série de gestos que brincam com as coreografias desempenhadas no cotidiano de seu lavor, introduzindo as cenas em uma atmosfera surrealista.

A vivência desdobra-se em frases capturadas e transformadas em placas de sinalização, em uma obra audiovisual e algumas fotográficas, estas acompanhadas de depoimentos, espécie de poemas livres, que se revertem em texto para compor o ambiente de sonho e adormenta – uma tempestade-vulcão, da ordem das coisas muito intensas, que combina amor, dor e medo. Dessa forma, Costa e Silva recria mundos e nos possibilita sermos outros, sermos muitos, mesmo que dentro de nós mesmos. Como disseram a ela entre as inúmeras escutas desse processo, “é importante não esquecermos quem somos (e podemos ser!) para além de executar funções. A gente pensa, a gente sente”.

Ana Carolina Ralston
curadora