“Fecha os olhos e imagina”, disse. A resposta, logo, veio-lhe à mente: óvulos, espermatozoides, divisões celulares. “Então, faça!” – a instrução ouvida foi aceita quase como um feitiço. Comprou plastilina e fez um conjunto de 3 peças. Com suas mãos, criou óvulo e espermatozoide originando células. A história desse encontro entre Nazareth Pacheco e Louise Bourgeois e seus muitos ápices reverberam na produção da artista até o presente.

Viver e fazer – talvez possamos pensar a produção de Nazareth Pacheco a partir desses dois gestos. E, no cerne de sua poética, encontramos sinônimos: experienciar e compartilhar o vivido; sentir na própria pele e transbordar em arte; ser arrebatada pelos acontecimentos e re-materializá-los; escutar o cotidiano e lidar com a matéria-prima. Todos esses verbos conjugam-se como traduções por Nazareth Pacheco que rompe as dicotomias entre o que consideramos como vida e como arte, ou, viver e criar. Essas instâncias têm seus contornos e fronteiras, mas são gestos intimamente conectados pela artista. Isto é, diferentes, mas que acontecem juntos. Ao longo dos anos, Nazareth redimensionou suas experiências, formulou narrativas do corpo e experimentou processos de incorporar e transpor o vivido para seus trabalhos. E, a partir disso, vem nos propondo mergulhos nas teias complexas da fatura e dos modos de agir com os materiais. Autoficção? Um tanto mais que isso, talvez. Já que não lhe interessa apenas uma menção ao que lhe atravessa intimamente ou uma organização dos fatos. Nazareth nos chama a perceber sensivelmente os acontecimentos e a construir narrativas múltiplas: que os corpos contam, que os corpos contrapõem quando ousam equipará-los. As histórias não são as mesmas, assim como os corpos também não o são.

O título dessa mostra rememora um dos contatos com Louise Bourgeois – referência fundamental e artista com quem Nazareth teceu em seus trabalhos vinculações visuais e conceituais, em muitas instâncias, como relação com os materiais, procedimentos construtivos, engajamento em temas biográficos e modos de compartilhá-los por meio da linguagem. Retornar a esse dito, mais de 25 anos depois, demonstra o quanto Nazareth se percebe seguindo uma trilha em que o “fazer arte” é uma instigante motivação, é uma espécie de resposta ao que se apresenta como vida e se demonstra como uma eficiente reflexão sobre o corpo e sobre a presença do corpo e os rastros que deixa no cotidiano. Talvez em outra citação de Louise Bourgeois – “Meu mundo de escultura e meu mundo social são uma coisa só” – também encontremos outra referencialidade no tocante à indissociabilidade entre arte e vida importante para Nazareth.

Assim, esse “faça”, que pode soar impositivo ou instrutivo, na verdade, surgiu na vida de Nazareth como um convite ao gesto, ao mover-se diante da necessidade poética, quando a ação, em si, com a matéria estabelece-se como mobilizadora do que de fato interessa no fazer arte. Tal ação verbal direcionada à Nazareth também resvala nesta sua última série de trabalhos. Objetos apropriados do cotidiano são reproduzidos em materiais não habituais, enquanto seus usos também se reconfiguram para além das normatividades prescritas e vigentes. A artista, nessa rede de construções e recompactuações com o cotidiano, adiciona aos objetos ações performativas e imprevistas. Ela os revira, os faz dançar, os movimenta, enquanto coreografa no corpo as texturas, as formas, as histórias desses objetos. Assim, imanta nos objetos algumas indagações: o que é o corpo diante de algo? Como age o corpo quando em território não normatizado? O que acontece entre o corpo e os objetos quando as ações do corpo podem ter a tarefa de transmutar objetos e o próprio corpo? Em contato com uma matéria outra e dita não habitual, como o corpo reconfigura os espaços de ação com um dado objeto?

Diante dessas perguntas, sem resposta ou com infinitas possibilidades de tatear esse terreno tão inflamado, onde o capacitismo insiste em formular sua ambiência, Nazareth nos convida a adentrar os enigmas das formas ditas como “simples” ou “padrões” tão presentes no cotidiano, que foram e seguem sendo produzidas de acordo com os ritmos das produções seriadas, destinadas a usos parametrizados e com manuais de instrução que visam um “ser humano comum”. Comum, segundo quem ou o que? Padrão que serve a que e atende a que corpos?

Se pararmos para pensar, há todo um esforço para que esses objetos entrem em linha de produção e atendam a um corpo cujas dimensões também são pensadas como um padrão de ser humano, artificial, produzido, idealizado. Parâmetros, médias, percentis são diretrizes que habitam sorrateiramente o cotidiano e nos fornecem uma cartilha de gestos que guiam os usos. E mais: nos dizem muito sobre como o corpo deve reagir para que a engrenagem toda – desde a produção, consumo e usufruto – funcione plenamente. Não é preciso muita acuidade em anatomia ou arquitetura para percebermos que o “modulor”, de Le Corbusier, por exemplo, que é tido, até hoje, como um parâmetro importante para projetos, aludia a um homem alto e caucasiano – corpo este muito pouco representativo da população mundial, mas que guia até hoje o ordenamento dos espaços e do design de objetos.

Mudar o peso e o material e repensar o modo como os objetos acontecem no espaço e se disponibilizam aos corpos, por exemplo, são procedimentos que revelam outras faces dos próprios objetos e de quem se dispõe a usá-los. Está aí o “faça” de Nazareth nestes trabalhos. Um banco pesado. Um bastão e um par de bachi dourados. Um tambor shime de taiko feito de latão, corian e cristal. Uma raquete de tênis com rede de cristais, com um furo ao meio. Uma cesta de basquete longe da quadra. Um conjunto de bolas em formato de dodecaedro e pinos de boliche. Uma dupla de colheres em x, que sustenta 2 ovos. Um bambolê de cobre e cristal. Esses objetos foram reestabelecidos no espaço e foram selecionados pela artista porque suas formas induzem a usos muito direcionados, muito específicos, que obrigam a obedecer a uma espécie de cartilha bem parametrizada e de consenso duvidoso e que exigem um exercício de uso muito assertivo. Nesta série de trabalhos, há também uma órtese Dennis Brown, um outro objeto apropriado que faz parte da história de Nazareth. A artista refez a órtese, comumente usada para auxiliar na correção da deformidade e alinhamento de pés congênitos. Feita em bronze, a escultura é acompanhada por um par de sapatinhos vermelhos. Em comum, vale novamente salientar, que os usos únicos e parametrizados de cada objeto não são apagados, mas representificados. A artista refez cada objeto e em cada processo de construção propõe um desvio, um campo estético para os repensarmos e nos coloca diante de uma percepção crítica acerca das tentativas de apagamento da pluralidade dos corpos.

Além disso, há registros fotográficos de ações que acompanham os trabalhos. Nazareth performa e registra ações que não constam em manuais, tampouco são habituais quando encaramos a ergonomia dos objetos em seus usos ordinários. Mais uma vez podemos nos perguntar: a que corpos a ergonomia atende? Prosseguindo: mesmo na arte, em ambientes pedagógicos e ditos de experimentação, ou naqueles que não se pretendem a especialistas, os processos poéticos se destinam a que corpos? E o que exigem dos corpos? Talento, maestria, destreza, perfeição? Cada corpo, com sua história. Cada corpo traz junto de si uma técnica única, um modo único de fazer mundo. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Dom de Iludir, de Caetano Veloso, lançada em 1976).

Nessas sequências de registros fotográficos, o corpo da artista é um agente de transmutação. Adentra a cena, reconhece e rivaliza com a função original do objeto. E reveste o objeto de uma camada que não tem nome, que não se aprende, que é impossível de nomear definitivamente, pois se quer em gerúndio: acontecendo sempre que alguém ousar estar junto, sempre que alguém dançar o imprevisível, sempre que a movência tomar o corpo.

Daí, podemos pensar: em toda prática há um processo de conhecimento e de experimentação acerca do que o corpo faz. E em suas práticas artísticas, sabendo que o corpo reage das mais distintas maneiras, a cada instante, a cada desejo, a cada memória que o atravessa, ao invés de agir na exceção, Nazareth propõe convivências entre a norma e as possibilidades. E constitui, assim, uma camada de antagonismos e de oposições, que não se apaziguam, em seus trabalhos. Nazareth combate entraves com possíveis. Propõe contorcionismos do olhar para vencer o capacitismo implícito nas medidas padronizadas. Pois, o que lhe interessa é: o que faz o corpo, ao invés de o que deveria fazer o corpo.

Galciani Neves

 

1.Trecho de entrevista concedida por Louise Bourgeois, transcrita em Bourgeois, Louise. Destruição do Pai, Reconstrução do Pai. São Paulo, 2000, p. 96.
2.Capacitismo é qualquer tipo de discriminação contra uma pessoa em função da deficiência, que pode ser definida como: toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas (lei 13146, 2015, art 4§1º).
3.Ramo da ciência que investiga como as coisas devem ser adaptadas ao corpo humano para intensificar a produtividade e a eficiência do uso de objetos.