“Calorcito apresenta pinturas e instalações inéditas na qual o calor é tanto força vital quanto cenário apocalíptico. Entre luzes, motores e cores ácidas, ao mesmo tempo em que a terra aquece; luzes, telas, ACs e IAs reduzem as trocas de temperatura entre os corpos naturais. A exposição é um convite a se conectar com a terra (sem terra) e suas transformações enquanto ainda estamos aqui, apesar da artificialidade de nossos tempos.”

Texto curatorial por Ana Roman

Ao me aprofundar no trabalho de Mari Nagem, deparei-me com uma pesquisa que explora a relação entre cultura digital e natureza. Usando diversas mídias, cores vibrantes e contornos marcantes, suas obras destacam a artificialidade das paisagens, a subjetividade dos dados e a busca capitalista pela felicidade. Com títulos instigantes, Nagem questiona a existência e tenta trazer sensibilidade ao nosso vínculo com as máquinas. Entre seus trabalhos, um em especial chamou minha atenção: Infinitum. Abri o link do vídeo e fiquei minutos em um scroll infinito entre camadas de rochas que apareciam na minha tela. Fiquei pensando se aquelas rochas poderiam, de algum modo, ouvir ou sentir minha presença, como na história que a antropóloga estadunidense Elizabeth Povinelli contou sobre o povo Larrakia e sua relação com a Old Man Rock. A sensação era de que as camadas geológicas e digitais estavam conectadas de maneira mais profunda, como se o tempo e a materialidade das rochas se misturassem à lógica virtual do vídeo generativo.

A história à qual me referi no parágrafo anterior é narrada por Povinelli no artigo “Do rocks listen?” (1995). Ela nos fala sobre uma audiência do processo conhecido como Kenbi Land Claim, no qual o povo Larrakia buscava o direito à Península Cox, na Austrália. Durante a audiência, uma mulher do povo Belyuen explica que a rocha sagrada nomeada Old Man Rock, central em sua cosmologia, podia sentir e ouvir o seu povo quando caçavam, coletavam alimentos ou descansavam na área. O responsável do Estado, encarregado de avaliar a autenticidade cultural desse relato, ouviu a mulher, mas sua análise baseou-se, sobretudo, em premissas ocidentais: ele apenas conseguia perceber o valor econômico e ecológico da terra de forma científica e objetiva, desconsiderando a perspectiva cultural.

A autora utiliza-se dessa história para argumentar que o pensamento ocidental está enraizado no que ela denomina de “imaginário do carbono”, lógica que separa vida e não vida com base em processos biológicos como nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Entidades como rochas e minerais são vistas como inertes e sem relevância ontológica. A crise ecológica do Antropoceno, no entanto, desafiaria esse paradigma, mostrando que a deterioração ambiental é também uma crise civilizacional e epistemológica. Como alternativa à situação em que vivemos, Povinelli propõe a construção de uma “geontologia”, uma forma de pensar diferente, que reconhece a interdependência entre seres orgânicos e inorgânicos e que desafia a separação entre o mundo físico e o humano.

Um dos primeiros passos para a construção dessa outra ontologia propõe que desdramatizemos a extinção humana, percebendo-a como parte de um processo contínuo de desaparecimento de diversas formas de vida, que ocorre há séculos – focamos a iminência de um grande acontecimento, enquanto nosso cotidiano é marcado por inúmeras situações de sofrimento, precariedade e exaustão, como os extermínios e as condições degradantes impostas a certos indivíduos e povos, além da contínua degradação dos seres da Terra, tratados apenas como recursos naturais. Em vez de focar exclusivamente na preservação da humanidade, a geontologia amplia a preocupação para os arranjos que sustentam todas as existências.

Estaria a artista Mari Nagem, em seu trabalho, mobilizando alguns operadores disso que chamamos nos parágrafos anteriores de geontologia?

Primeiramente, talvez pudéssemos dizer que Calorcito, mostra individual de Nagem, tem diálogos com o domínio da ficção científica, ou melhor, da ficção especulativa. À primeira vista, essa frase, que escolhi para iniciar o texto, não carrega juízo de valor. Um olhar mais atento, no entanto, leva-nos a interpretá-la de modo a afirmar que Nagem habita, com coragem, sua realidade e busca, por meio da ficção, construir uma alternativa para o momento de catástrofe climática e para a terra arrasada dominada pela internet e pelas tecnologias digitais. A exposição nos leva a considerar cenários pós-catástrofe, em que ruínas tecnológicas e novas paisagens emergem, sugerindo que a Terra continuará a se transformar, mesmo sem a presença humana. Explora-se a interseção entre o natural e o artificial, projetando uma realidade na qual o planeta é moldado de maneiras imprevisíveis e desconhecidas.

Nesse contexto, o calor, ponto central aqui, vai além de conectar vida e matéria inerte, representando tanto o poder transformador da Terra quanto os efeitos devastadores da ação humana. Nagem questiona a separação tradicional entre o orgânico e o inorgânico, destacando a interdependência entre processos naturais, tecnológicos e biológicos. Na instalação Poente, por exemplo, parte da série RGB, o pôr do sol é recriado por meio de luzes artificiais, associando a cor vermelha a um cenário de secura e desolação. Os reflexos que antes se formariam na água agora se projetam diretamente no chão, reforçando a ideia de colapso entre a natureza e o tecnológico. Com esse trabalho, a artista parece sugerir que, mesmo com a ausência humana, o planeta continua a se transformar, habitado por vestígios tecnológicos, formas de vida microscópicas e ruínas plásticas.

Já em Ondas de Calor, a artista explora a dissolução das fronteiras entre o natural e o artificial. A chuva metálica, gerada por motores sincronizados, simboliza a fusão dessas duas dimensões, em que um fenômeno tipicamente natural, como a chuva, é transformado em algo mecanizado e desprovido de sua organicidade original. O gesto subverte a dicotomia entre o que é natural e o que é construído, ressaltando como a ação humana e a tecnologia intervêm nos processos ambientais, criando outras realidades geológicas e atmosféricas.

Em Estratégias de Proteção, Mari Nagem utiliza seções de ninhos de pássaros, reorganizadas em complexas estruturas celulares, para refletir como as estratégias naturais de proteção foram modificadas pela interferência tecnológica. Os desenhos seccionais desses ninhos são sobrepostos, formando composições que sugerem adaptação e movimento constante – uma metáfora para a capacidade dos sistemas naturais de se ajustar às novas condições. A cerâmica que acompanha a obra, com um ímã pintado que remete a um olho vigilante, simboliza a presença constante da observação e da resistência. Nagem sugere que, apesar da intervenção humana, a natureza continua a encontrar maneiras de sobreviver, incorporando o artificial em sua luta pela continuidade.

Por fim, na série de pinturas NGrams, Mari utiliza dados mapeados pelo Google sobre a frequência de palavras em fontes impressas do século 20 para criar paisagens gráficas que se organizam como breves narrativas visuais. Cada palavra é representada por uma cor, e sua distribuição ao longo do tempo revela padrões linguísticos e históricos. Ao utilizar algoritmos que processam e organizam grandes volumes de informação, a obra, ao mesmo tempo, consegue recriar uma parte das paisagens culturais dos contextos históricos mapeados pela base de dados e nos convida a refletir sobre a relação entre inteligência humana e tecnologia, sugerindo que os processos automatizados de coleta e análise de dados participam ativamente da construção de novas leituras sobre o passado e o presente.

Calorcito nos desafia a refletir: que paisagens a Terra criará a partir das ruínas tecnológicas e da destruição climática? Quais vestígios do presente sobreviverão e que novas formas de vida emergirão desse cenário? Mari Nagem nos convida a pensar além das fronteiras humanas, sugerindo que, mesmo em meio ao colapso, o planeta continuará a se transformar como um agente geontológico, em constante mudança.

 

1.A obra em questão foi realizada em colaboração com Thiago Hersan e será exibido em Setembro no espaço independente Canteiro, em São Paulo.
2.POVINELLI, Elizabeth A. “Do rocks listen?”, in: American Anthropologist. New Series, vol. XCVII, nº 3 (1995), p. 505-518.
3. Old Man Rock, ou Darri-ba Nungalinya, é uma rocha sagrada situada perto da costa de Nightcliff, na cidade de Darwin, no território do norte da Austrália. Segundo a tradição, seu espírito, quando perturbado pelas ações humanas, pode provocar devastação, desencadeando fenômenos meteorológicos extremos, como tempestades violentas e ciclones.
4.POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: A Requiem to Late Liberalism. Durham: Duke University Press, 2016.
5.Expressão que remete ao pensamento de Donna Haraway. Ela nos desafia a “pensar diferente” ao questionar as divisões tradicionais entre natureza e cultura, humano e não humano. Ela propõe o abandono da visão hierárquica que coloca o humano no centro, e, em vez disso, abraçar a interdependência entre espécies, tecnologias e o planeta. Esse novo modo de pensar, segundo Haraway, exige colaboração e coevolução entre diversas formas de vida, promovendo uma convivência mais equilibrada e menos exploratória em um mundo em constante transformação. Para saber mais: HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.
6.Expressão usada por Marisol de la Cadena no artigo “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond ‘Politics’”. In: Cultural Anthropology, vol. 25, nº 2, 2010, p. 334-370.
7.HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.
8.A expressão faz referência ao livro Terra Arrasada, de Jonathan Crary, no qual o autor discute como o capitalismo tardio e o “complexo internético” — composto de redes sociais, inteligência artificial e outras tecnologias digitais — limitam nossa existência e devastam o meio ambiente e a sociedade. Para saber mais: CRARY, Jonathan. Terra Arrasada. São Paulo: Ubu Editora, 2022.