Forjar um livro vivo

do papel a madeira se lembra
do vinco farpa casca
das tempestades de verão
cadeias de árvores
do tronco que se enverga no alto
com o peso acumulado dos pássaros
um livro, papel sobre papel
Ana Estaregui

Forjar um livro vivo – plataforma aqui disputada pelas formas orgânicas, cuja cognição se dá no terreno dos ciclos vitais. Fundar um livro destituído de enunciados, na busca por um objeto em metamorfose, criatura a um só tempo de realidade vegetal e emergida da especulação ficcional. Profanar o livro: manipulá-lo, cortá-lo, colá-lo, queimá-lo, pintá-lo; não para destruí-lo, mas para ir além e aquém de seu projeto iluminista, não encerrar no cânone da palavra as possibilidades políticas da linguagem.

No corredor da Galeria Lume, há uma série de livros seccionados, unidos um a um. Impossível acessar seu conteúdo. Não sabemos da onde vieram, o que dizem, que programa instituem – na realidade, nada disso importa. Aqui, eles se apresentam enquanto lâminas de prateleiras amolecidas, flácidas. Alguns, moldados pelo seu próprio peso e gravidade, pendem como línguas, subvertendo os pressupostos de permanência e solidez. Eles evocam suscetibilidade e mutabilidade, além da sugestão direta à processos orgânicos, de qualidades corporais. Trata-se de uma série que parece ser o desdobramento de obras precedentes do artista, sobretudo as instalações com livros fatiados e colados, dispostos antes diretamente no chão. Desta vez, no entanto, falamos de uma radicalização daquele procedimento, pois agora são restos de livros que desmoronam, se derramam charmosamente diante de nós, clamando por outros usos entre nuances de branco e amarelo; páginas antigas e novas. Outros, feitos a partir de cortes menores, constituem formas circulares como roldanas híbridas e irregulares.

A rigidez da estante e da biblioteca dá lugar à sinuosidade de um livro-corpo que deseja rememorar sua origem vegetal, se engajar com uma memória longínqua, primeva. Essas Bibliomorfas se espraiam pela parede como organismos que traçam e negociam rotas que sejam capazes de abrigar seu crescimento. Talvez fosse possível imaginá-las tomando pouco a pouco toda a galeria como uma grande partitura que reivindica para si esta arquitetura na mesma medida em que abandona palavras pela metade – afinal, o balbucio de seu significado é outro, apenas entrevisto, jamais plenamente enunciado.

Já na sala expositiva, as prateleiras seccionadas voltam a ocupar as paredes com as obras da série Biblioteca por Vir, já previamente conhecida na trajetória do artista. Trata-se de uma obra cuja ambiguidade é central: água, fogo e mineral compõem os elementos que ali vemos, embora cada um cumpra um diferente papel. O resíduo chamuscado da pólvora sobre a superfície denota uma interferência entre o controle e o descontrole, entre a agressão e o cuidado. É como se Dupin produzisse pequenas cicatrizes sobre esses livros, nos convidando a imaginar o percurso de seus gestos e a biografia desses objetos. Além disso, há virtuosas aquarelas com motivos botânicos, nos fazendo lembrar da prática dos artistas viajantes e das expedições científicas que ajudaram a construir o imaginário tropical e seus clichês. Por fim, detalhes de douração, além de forte apelo estético, demarcam o livro como objeto distinto e precioso, item de domínio das elites culturais ao longo de sua história. São peças que nos induzem a estímulos necessariamente contraditórios (são belas e destrutivas, fascinantes e imorais) e resistem a qualquer sentido unívoco. Daí, as ambivalências são muitas: ideias historicamente associadas ao livro como a perenidade (espécie de invulnerabilidade histórica) e a credibilidade (como repositório da verdade e do conhecimento) são contestadas por um título que nos sugere que a tal Biblioteca por Vir é, na realidade, uma espécie de retomada vegetal que se alastra por essas superfícies. Ao contrário do rigor e da catalogação científicas, esses caules e folhas insurgem sobre os livros como organismos ingovernáveis, pondo em cheque este dispositivo centrado no império da razão. Em seu lugar, vislumbramos novas alianças entre espécies e mundos habitados por seres porosos, híbridos e múltiplos que reafirmam um senso de parentesco entre o orgânico e o inorgânico, o animado e o inanimado, no anseio de fundar outros horizontes e rearranjar relações entre viventes e extra-viventes. O por vir é, afinal, uma grande floresta. Se todo livro já foi, ao seu modo, árvore, o por vir é portanto um retorno, o que torna passado e futuro categorias indissociáveis; um só processo de prospecção e de retrospecção, de rememoração e de devir simultâneos.

Pierre Bourdieu disse certa vez que “um livro muda pelo fato de que ele não muda quando o mundo muda”. Talvez Lucas Dupin discorde dele. O que há aqui, em todo conjunto de trabalhos, é a reivindicação de um livro eminentemente vulnerável, capaz de absorver as transformações não só do seu entorno, mas de seu tempo. Um livro na busca do reconhecimento de um estranho, um Outro, no seio de si mesmo.

Pollyana Quintella