A parte que suporta
Três trabalhos compõem A parte que suporta a parte, individual de Nydia Negromonte, cujo título sugere uma sequência potencialmente infinita de relações, apesar de estarem instalados num lugar e num tempo específicos. Ali, nada parece existir de maneira autônoma, como seria o caso de uma obra de arte (desde pelo menos o final do século 18), ou uma das definições de desenho: projeto de um mundo ideal.¹
Na verdade, o que há são partes de um todo jamais apreensível, que se constituem material e transitoriamente.
Afinal, segundo a artista, “desenhar é agir sobre um suporte […] [e] com o espaço, perceber a sua potencialidade e com ele dialogar”². Nesse processo, o “suporte” também se modifica, oferecendo resistência e deslocando os sentidos daquilo que antes era estável, ou previsível: a projeção de uma sombra, uma parede de galeria, uma hortaliça qualquer. A sombra modifica o objeto e consequentemente sua representação, que, por sua vez, parece não “representar” nada além de si mesma. É como se Umbra — um dos trabalhos, feito em guache sobre papel — fosse um desenho encarnado, e não a notação gráfica (algo melancólica) de um referencial ausente.
A parede, impregnada de umidade pela artista, revelará ao longo dos dias camadas mais antigas, como fragmentos de tempo, vestígios de outras exposições que já foram apresentadas no lugar. Por outro lado, quem nunca viu uma parede descascada? Uma fotografia de arquivo, ampliada em grandes dimensões, recusa seu uso como lembrança pessoal para tornar-se quase um espelho de quem a observa: quem nunca carregou um punhado de frutas quando criança?
Campo aberto, além da argila depositada na parede e da fotografia de formato semelhante, se completa com camadas sobrepostas de papel “de arroz”³, com gramatura de apenas 6 g/m2. As fibras, no entanto, são resistentes, e ao longo dos dias saberemos o resultado desse embate: argila seca e retraída em placas, pinturas antigas da parede agregadas ao barro, o peso da gravidade, os obstáculos formados pelos fios, preenchidos por água e cola branca. Apesar de previsível, a forma final da obra segue em aberto, diferente de si mesma a cada montagem.
Nos dias anteriores à abertura da exposição, Negromonte convidou algumas pessoas para encapar dezenas de quilos de hortaliças frescas com argila. No jardim da galeria, uma mesa atuou como suporte para o trabalho colaborativo e também como catalisador de encontros e conversas desinteressadas. Posta foi depositado logo abaixo de Campo aberto, sobre o piso cinza-claro, de cor semelhante à argila molhada que, ao longo dos dias, perde água e pigmentação. As hortaliças, antes tão familiares, tornam-se corpos estranhos, que se transformam a partir (ou apesar) da argila que as envolveu. Algumas brotam, outras murcham e apodrecem.
Posta, assim como Campo aberto e Umbra são e não são trabalhos inéditos. O primeiro foi apresentado em algumas ocasiões, como as coletivas A iminência das poéticas, 30ª Bienal de São Paulo (2012) e Afago, Sesc Quitandinha (2022), além da individual Lição de coisas, no Museu de Arte da Pampulha (2012). A obra, porém, se transforma a cada montagem, a começar pelas hortaliças que serão, inevitavelmente, outras. Além disso, algumas contingências se impõem: neste caso, Posta não se apresenta sobre uma mesa e não é encapada com argila preta; afinal, a parte que suporta essa parte — tanto o espaço quanto os outros trabalhos — são, eles também, outros.
Campo aberto participou da individual Desenhos são como sementes debaixo de tudo, no Centro Cultural Unimed-BH Minas (2024) e se apresentava numa única parede, sem a “dobra” que lhe dá suporte em São Paulo. As folhas de papel, neste caso, também são mais numerosas, de modo a apresentar maior resistência ao peso da argila seca. Em ambos os casos, um projeto seria não só inútil, como conceitualmente equivocado.
A série Umbra, da qual a artista apresenta também uma parte, foi concebida durante a residência Solanas Art Experience, em 2024 no litoral uruguaio. Afetada pelas pinhas cuja presença era marcante no lugar — uma consequência inadvertida do plantio de árvores para mitigar a ação do vento —, Negromonte coletou várias delas e passou a desenhá-las como exercício de observação. Antes do processo, porém, elas também foram afetadas por uma iluminação dramática, o que acabou por transformar o próprio desenho: não como registro de um objeto específico (embora, rigorosamente, possa ser definido assim), mas como um emaranhado de relações. Os campos cromáticos se afetam mutuamente, as sombras distorcem a visão do objeto, o papel recebe as pinceladas mas às vezes as deixam “sangrar”. Sem contar a ação do vento que, de alguma maneira, inaugurou o trabalho há décadas — afinal, se não fosse por ele, os pinheiros não teriam sido plantados, preenchendo o chão com milhares de sementes. A série de desenhos seguiu seu curso para além do espaço da residência. Em alguns casos, ao lado das pinhas, a artista posicionou conchas de aruá-do-mato coletadas no Pantanal, criando uma espécie de diálogo entre espirais.
A parte que suporta a parte trata, fundamentalmente, dos deslocamentos. Não apenas no que diz respeito aos usos e significados dos objetos comuns — como aliás artistas fazem de maneira contundente, bem humorada e crítica, desde pelo menos Marcel Duchamp —, mas promove um deslocamento da própria percepção das coisas. Em outras palavras, o sujeito, sua identidade pessoal e suas visões de mundo, se constroem em permanente relação. Afetado e suportado por todas as outras partes, num processo do qual os começos (e os finais) são sempre imprevisíveis.
1. Ou ainda como manifestação do divino, tal qual o acrônimo de disegno proposto pelo pintor e arquiteto Federico Zuccaro (c. 1540-1609), segno di dio in noi.
2. NEGROMONTE, Nydia. Lição de coisas. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2012, p. 86 (catálogo de exposição). A passagem completa é: “Desenhar é você agir sobre um suporte. A única certeza que eu tenho, quando desenho, é que quero atrito. Não gosto de desenhar, por exemplo, com hidrocor sobre um couchê no qual você não tem atrito, não tem resistência. Me interessa a resistência, o atrito, a fricção e a percepção disso. Agir com o espaço, perceber a sua potencialidade e com ele dialogar, isso para mim é o estado de desenho.”
3. Apesar do nome consagrado (e comercialmente utilizado), o papel dito de arroz raramente é feito com arroz. A este respeito, ver HUNTER, Dard. Papermaking. The History and Technique of an Ancient Craft. Nova York: Dover, 1978.
Mariana Leme