Memórias para o esquecimento
Por vezes se confundem memória e imagem, vivência e sonhos, gesto e palavra. A guerra narrada pela família, fuga imperfeita, os barcos à espera no porto, a chegada em um lugar onde se desconhece a fala… imagem. Os aviões em queda, as mergulhadoras que saltam quase em sincronia, os políticos retorcidos na tela da televisão. Imagem. Neste caso, possivelmente, àqueles que escutam atentamente às histórias contadas mesmo sem jamais vivenciar os percalços vividos, em muito se assemelham aos que miram atentos através da janela, seja ela um vão concreto aberto para o mundo ou uma caixa receptora de imagens. “Nenhum pássaro cruza, nenhum cão ladra. Estamos aqui e não lá, talvez pensemos aliviados, ainda que este “lá” esteja em imediata proximidade, ainda que os estrondos das armas que ouvimos bem aqui à nossa volta se confundam com aqueles emitidos ao vivo pela tevê”, escreve a curadora Marisa Flórido César.
Mesmo que diariamente submersos em fotografias, há sempre algo que se esconde do olhar, a câmera promete eternizar o momento, mas o instante escorre com o tempo, escapa do quadro que se quer história, mas consegue apenas retornar, se manifesta entre o que se vê e que se oculta. Filha de imigrantes libaneses, em 1966 Ana Vitória Mussi vai à Kfaraakka 1 , cidade de seus ancestrais, em busca da memória que se fez esquecida e volta com caixas de negativos ainda hoje não revelados. Para ela aquilo que não se desvela, descortina mais do que a obviedade da cena imóvel. O que nos diz Kfaraakka, vila da melancolia (tradução literal em árabe), fixada entre rolos de negativos a resguardar segredos? No prefácio do livro “Memória para o esquecimento, de Mahmud Darwich 2, o escritor Ricardo Lisías, bisneto de libaneses, conta que em 1982 perguntava sobre os bombardeios que voltavam a ocorrer em Beirute, porém não compreendia a explicação de sua mãe, mas ali mesmo entendeu por que os mais velhos da família pareciam ter um buraco por dentro. Há esquecimento o suficiente para eles esquecerem? Resta o sabor do kibe, o nariz, as olheiras marcadas, um adesivo escrito maktub ao contrário e o sotaque que insiste em trocar o “p” pelo ‘b”. É um “remake”, pois estamos voltando ao que já foi imagem, filme de nós, condenados ao retorno pela negação, da qual a dialética não se liberta.
Com obras de diferentes fases da produção de Ana Vitória, “À espreita” expõe uma artista que enxerga pelas frestas, fotografa tudo o que se oculta entre o ver e o não-ver. Já não há mais a verdade/documento fotográfico, mas a sua invisibilidade e o constante embate entre a reminiscência e o esquecimento. Silêncio. Nenhuma gaivota… a imagem se sustenta por um triz.
Paulo Kassab Jr.
1. Cidade no norte do Líbano, de onde imigrou a família de Ana Vitória Mussi.
2. Darwich, Mahmoud – Mémoria para o esquecimento; 1. Ed – Rio de Janeiro: Tabla, 2021