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Ensaio sobre o fim do mundo

 

Esta é a terra morta
Esta é a terra dos cactos
Aqui as imagens de pedra
São criadas, aqui recebem
A súplica da mão de um homem morto
Sob o brilho de um astro em desaparição.
T S Eliot – Os homens ocos (trad. Caetano Galindo)

A indignação é a tônica dessas pinturas de Marina Hachem, daí a opção pelo preto e variações do branco e do cinza, as tonalidades adequadas para a realização de paisagens medonhas, fumegantes e fedorentas como o Pantanal, que desde o ano passado nos vem chegando pelas imagens televisivas, com os cadáveres carbonizados dos animais caídos ao final de uma fuga infinita. Eles não sabiam disso, mas nós, ah nós que armamos a armadilha, sempre soubemos, embora a maioria queira esquecer. Mas não Marina que, divergindo de quem perpetuamente celebra as cores da natureza, produz uma exposição que é um réquiem; um espaço devotado ao silêncio em honra aos mortos, especialmente aqueles que morreram precocemente sem sequer desconfiar disso.

Segundo as pinturas recentes de Marina, nessa que é sua segunda exposição individual, intitulada Ensaio sobre o fim do mundo, a prova da destruição não está apenas lá no Pantanal, na longínqua Floresta Amazônica, no degelo da ainda mais longínqua Groenlândia, ou do Círculo Ártico, onde vem se dando a progressiva desaparição da tundra, entre outros sítios e fenômenos tão distantes quanto intangíveis (aliás, como diriam os Inocentes do Leblon, os alienados alvos da poesia de Drummond, alguém aí foi ao Polo Norte verificar se está mesmo acontecendo um desastre ambiental? todo esse horror divulgado pela imprensa, o decantado desequilíbrio climático não será uma fantasia paranoica da ciência com um rosário de teorias projetadas para incutir pânico nos espíritos delicados? e, afinal, por que a implicância toda para com os plásticos, os pesticidas, os alimentos transgênicos, os sprays responsáveis pelo aumento do buraco na camada de ozônio etc?).

Pois a prova de tudo isso, como demonstra Marina Hachem, está aqui, colado a nós, moradores das grandes cidades, personificada nos lixões e aterros sanitários, monturos imensamente altos e extensos, estes pontuados pelas chamas permanentes da queima do metano, configurando um imenso fogão com bocas escancaradas ao céu aberto, entre os outros gases liberados pela decomposição do lixo. Aqueles, frutos das sobras das residências, indústrias e hospitais, têm seus resíduos disputados por gente faminta, ao passo em que vão contaminando a água, o ar, o chão e, mais embaixo, vem a força do chorume, o líquido espesso e escuro derivado do apodrecimento da matéria orgânica, envenenando o lençol freático, a água da chuva filtrada na travessia das camadas superficiais do solo, docemente adormecida.
No Brasil, segundo dados recentes (2020) do Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana, 49,9% dos munícipios brasileiros despeja resíduos em Lixões, enquanto 17,8 milhões de brasileiros sequer tem lixo coletado em suas casas.

O denominador comum da maior parte dessas pinturas é um tipo particular de Lixão: cemitérios de pneus. A artista foi marcada pelas fotografias de grandes dimensões do canadense Edward Burtynsky, feitas em 1999, em Westley, na California. Há anos Burtynsky vem produzindo imagens sobre a paisagem do mundo industrial, com o mesmo apuro e eloquência com que Ansel Adams, uma de suas fontes essenciais, abordou a natureza dos parques nacionais norte-americanos. No seu levantamento do impacto humano sobre a natureza, os cemitérios de pneus, como concluiu a pesquisa empreendida por Marina, são passagem obrigatória, haja visto a catastrófica queima acontecida em 2021 no maior cemitério de pneus do mundo, no Kwait -entre quarenta e dois e cinquenta milhões (as fontes divergem quanto ao número) espalhados e empilhados ao longo de cinco quilômetros.

Marina apropria-se e transfere essas imagens para as telas, recortando-as, alterando seus enquadramentos, ampliando alguns de seus detalhes ou ainda reduzindo suas dimensões como verdadeiras infestações, o que a rigor são mesmo, eficazes na condenação do solo à infertilidade e à morte. Transferidas por intermédio de pastel oleoso de cor preta, as imagens provenientes das fotografias foram parcialmente encobertas por camadas de cimento branco e cinza, agregadas na base de telas de arame (dessas de galinheiro), técnica semelhante a utilizada para a produção de concreto armado. As camadas, aparentadas com fluxos torrenciais, cascatas, crateras ou ainda porções submersas, a maneira de pântanos, são confeccionadas por pinceis achatados e duros, por espátulas ou ainda diretamente pelos dedos. O resultado é sempre áspero, crispado, convulso, ainda mais porque, ao menos na parcela de pinturas com a presença de massas de cimento, a tela de arame sobrepõem-se as imagens, contribuindo para uma atmosfera perpassada pela clausura; paisagens encarceradas. São pinturas ou muros? Uma indagação que não se resolve. Vistas de cima, como pela janela de um avião, ou do solo, entre os vales fabricados pelas encostas de pneus, as paisagens não têm profundidade, carecem de horizontes, de distâncias.

Constituídas exclusivamente por pneus, essas pinturas leva-nos inevitavelmente a pensar na razão da existência deles, na sua condição de um dos principais, mais resistentes resíduos da indústria automobilística, o signo por excelência do século XX e que adentra o nosso século cinicamente envergando uma nova capa de justificativas. Enquanto isso se dá, defende a nossa artista, a jovem Marina Hachem, o homem vai ensaiando com eficiência o fim do seu mundo.

Agnaldo Farias